Em livro publicado em 2015 e agora lançado no Brasil, intitulado "A aventura", o filósofo italiano Giorgio Agamben reflete sobre as potências que acompanham a vida humana do início ao fim. Para todos os efeitos, o sujeito nunca está sozinho. Há divindades que orquestram o ritmo de sua existência. A maneira como cada indivíduo se relaciona com aquilo que lhe é inevitável irá definir sua aventura pessoal - tão única quanto, necessariamente, coletiva.

Viver é lançar-se no mundo, observar os detalhes da experiência cotidiana, resgatar o passado, embebedar-se do presente, criar uma ideia de futuro. A tarefa de construir o amanhã começa no instante em que se é capaz de observar, naquilo que está bem próximo, os elementos que constituem o distante. Nesse sentido, Agamben avoca Walter Benjamin (1892-1940), para quem o singular está no universal, essa imensa síntese viva e contraditória das intersecções particulares.

Do afro-romano Macróbio, nascido na Numídia por volta do ano 370, Agamben recupera os "Saturnais", em cujo banquete uma personagem demonstra crer que, no nascimento de cada ser humano, quatro divindades formam o comitê de boas-vindas: Daimon, Tyche, Eros e Ananche.

O Demônio (a natureza criadora da mitologia greco-romana, não a figura empesteada da tradição judaico-cristã) e a Sorte zelam pela luz do dia e os bons presságios do anoitecer, garantindo condições para o desenvolvimento do bom caráter no curso do tempo. Já o Amor e a Necessidade darão ao novo habitante do mundo a certeza de que é urgente curvar-se diante do inevitável, ofertando o melhor de si para o outro, aquele com quem que a divisão de tudo deverá ser realizada.

O equilíbrio de atenções prestadas a essas divindades trará conhecimento e fecundidade. Mais do que isso: a relação de cada ser humano com as divindades que promovem sua chegada ao mundo dirá tudo sobre sua ética.

Foi Goethe (1749-1832), após minuciosa leitura crítica dos "Saturnais", quem acrescentou uma nova divindade à tribuna dos nascimentos: Elpis, a Esperança. O quinto elemento cultuará Daimon (a origem) e irá se responsabilizar pela correta distribuição de tributos às demais divindades. A Eros, por exemplo, Goethe predizia enorme dificuldade para render justa homenagem. A questão permanece oportuna: não havendo esperança sem amor, como imaginar um amor que não perca a esperança diante das sucessivas dificuldades da vida? Um "amor perdido" sobrevive de quê? A desesperança, nesses termos, é uma vida que deixa de ser necessária, tornando-se vítima da má sorte, sem Sol nem Lua, abandonada pelo Demônio (o da longeva tradição pré-cristã, certo?), que lhe garanta inspiração, pulso, fortaleza.

Aventurar-se, escreve Agamben, é reconhecer a fragilidade da criação diante de um tribunal de deuses tão diferentes, vaidosos, às vezes em aberto conflito uns com os outros. Devotar-se aos deuses da criação significa - antes e depois de tudo - manter coerência e firmeza de propósitos, em condições favoráveis ou duramente desfavoráveis. A fúria dos deuses tem um só alvo preferencial: os covardes que mudam ao sabor dos ventos e se desumanizam, afastando-se do outro e de si mesmos. Contra esses "tipos humanos" as divindades deixam de lado suas diferenças e se unem para destruí-los, venturosamente.