O escritor João Anzanello Carrascoza se inspirou numa visita que fez ao Museum of Broken Relationships, em Zagreb, capital croata, para escrever "Catálogo de Perdas". A obra, que sintetiza imagem (fotografias de sua esposa Juliana Monteiro Carrascoza) e texto numa narrativa formidável, reúne histórias de vida marcadas por rupturas de todo tipo, inesperadas ou previsíveis, repentinas ou lentamente engendradas. O livro expõe a natureza quebradiça e dependente do ser humano. Muito menos do que heróis ou personagens míticos, cada sujeito é uma delicada peça de porcelana: pode comover pela aparência, mas não tem como esconder a fragilidade.

Imagem ilustrativa da imagem A democracia, sim!
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Algo semelhante ocorre com as melhores coisas criadas e desenvolvidas na história. Toda obra humana - material e imaterial - é crivada de imperfeições. Por isso mesmo, costuma ser temporária. A longevidade de ideias e objetos depende de cuidados permanentes, sentidos atentos e abertura para a renovação. Nada é imortal na mundanidade.

Em tempos de acirramento de conflitos ideológicos e demonstração crescente de intolerância e rancor, torna-se impossível não pensar na fragilidade da vida democrática. A democracia, como artefato humano, não é indestrutível, apesar de se revelar a mais sublime criação política da humanidade. Pode-se dizer que seja resistente e corajosa. Tem, contudo, seus limites. Não pode suportar tudo. A democracia não é, em si, um sistema político, um padrão de condutas eleitorais ou um campo aberto para as liberdades individuais. Ela é muito mais do que isso: é um jeito de ser, um estilo que se adota para a vida, uma fala que se converte em ação e, por sua vez, serve como modelo ideal para as gerações que nela e por ela se educam. A democracia é, ao mesmo tempo, uma opção ética e um exercício saudável de coexistir.

A sabedoria dos antigos afirma que nem tudo que reluz é ouro. Do mesmo modo, nem todos que se dizem democratas estão em condições de defender e viver a democracia. Por ser valor (quase) universal, poucos se arriscam a desmerecê-la publicamente. Alguém conhece, por exemplo, um político que diga, em plenas eleições livres, que fará de tudo para derrotar a democracia? Que seu objetivo é a tirania? Que, se eleito, irá instaurar um regime de exceção? É improvável. Na prática, entretanto, muitos trabalham incansavelmente contra a democracia. Lobos em pele de cordeiros existem aos montes, pedem voto, escrevem em jornal e, para colorir sua falsa imaculada imagem, apelam até para Deus no intuito de justificar seus despautérios cotidianos.

A democracia pressupõe critérios mínimos para um bom debate. Ela requer, antes de tudo, que espíritos democráticos estejam em sintonia. Não há conversa entre autoritários e democratas. Seria murro em ponta de faca. A democracia permite a voz, sugere a vez, acolhe todos os sentimentos livres e dispostos à convivência. Diante de conflitos, a democracia elabora mediações, fala à razão, convence por seus méritos convergentes. O ódio, não. Ele segrega, humilha e mata, apesar de se dizer também um democrata.

Na hora de votar e fazer escolhas, é preciso recordar a fragilidade democrática e protegê-la. A democracia, sim. O artífice do ódio, não. Ele não!