Foi-se o tempo em que, para matar uma democracia, era necessário promover drásticas rupturas da ordem institucional ou enfileirar tanques de guerra nas ruas. As ameaças, hoje, corroem a vida democrática por dentro, lenta e silenciosamente.

Um olhar breve e panorâmico da cobertura das eleições presidenciais no Brasil feita pela imprensa internacional percebe que alguma coisa muito estranha e assustadora está ocorrendo. A perplexidade diante da opção autoritária tomou conta da crônica política, das contendas intelectuais, das análises socioculturais. O ódio como estratégia consolidou-se na mentalidade e na prática entre diversos setores da sociedade brasileira.

Imagem ilustrativa da imagem A democracia e a esperança equilibrista
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De saudosistas da ditadura ("Aquele tempo em que tudo era bom e não existia vagabundagem") a jovens letárgicos ("O astrólogo gagá tem razão"), tudo parece fora do lugar. Desde 2013 -quando às praças e avenidas se dirigiram aqueles que sempre manifestaram repulsa por quem preenche os espaços públicos para reivindicar liberdade e solidarizar-se em afetos genuínos - o arcaico se assanhou e partiu para cima do moderno: roubou-lhe as vestes e aparece agora como novidade, uma força a enfrentar e vencer o mundo do qual se alimenta. Suicídio?! Não. Apenas a velha e teimosa mentira dando a volta ao mundo enquanto a verdade põe as meias.

As elites empresariais se somam à ruína, investindo tempo e dinheiro (tempo é dinheiro?) na promoção de "fake news" e no acirramento de posicionamentos polarizados, irreflexivos, violentos. Todas essas condutas, que variam da indiferença conivente à militância de "neo-hordas" em espaços diversos, não são, contudo, a causa do angustiante mal-estar à beira do abismo - são, em termos de alienação profunda, resultado de novos arranjos antidemocráticos na história nacional.

O sociólogo português Boaventura de Sousa Santos destaca alguns pontos no processo difuso de silenciamento da democracia brasileira. Em primeiro lugar, a supremacia do autocrata, isto é, a crença já histórica de que existem "salvadores da pátria". O slogan quinta-coluna "Meu partido é o Brasil" esclarece bem a questão. Não há ideias, não há divergências; não existem grupos nem classes sociais - e a desigualdade é uma ilusão. Existe o mito. Quando se nega que tudo é "partido" (parcela, fragmento de visão e prática de mundo), o desejo embutido é o de aniquilar as parcelas que não se escondem atrás da bobagem de que não existem parcelas. A mais militante, hipócrita e covarde das ideologias é aquela que diz que ideologia só os outros é que têm.

Sousa Santos também dá relevo ao viés plutocrático de influente microparcela social. Grupos organizados politicamente em torno de um "deus-mercado", rendido e vendável, são o termômetro das ideias em fluxo. Se alguém sobe ou desce nas pesquisas de intenção de voto, a divindade se alegra ou se entristece. Traduzindo: cinco biliardários globais e sua variação de sentimentos artificiais pretendem limitar a preferência política de países e continentes inteiros. Na boa crítica econômica, a isso chamam "Dark Money".

O sociólogo português ainda fala do fim do equilíbrio do espaço público, tornado trágico por robôs e algoritmos. Uma "matematicalização" virtual impõe comportamentos e rastreia as rebeldias, intuindo confiná-las em solitárias das quais nada irradiem. As tecnologias de controle, portanto, elegem quem pode ou não alcançar grandes públicos. A propagada noção de que a internet dá oportunidade a todos é, nesses termos, bastante questionável. A prova dos nove é fácil de operar: se todos tivessem vez e voz, a mentira seria desnecessária, e o ódio como política seria inútil.

A captura das instituições - mídia e judiciário, em explosivo particular - passa a determinar o certo e o errado, os mocinhos e os bandidos, numa seletividade surreal, promovendo o absurdo e a fragilização da república (os espaços políticos, os debates abertos, a valorização do bem comum) e da própria democracia (um sentimento de partilha que prioriza proximidades e direitos). Como se vê - e se sente -, a morte da democracia não precisa ocorrer em campo de batalha. Ela pode sucumbir por asfixia, medo, horror.

Que num domingo republicano a democracia possa emergir em mar seguro e respirar. E que o fascismo se perca pelo caminho, provando que, apesar de tudo, a bússola da liberdade é capaz de pregar-lhe boa e urgente peça.

Marco A. Rossi é sociólogo e professor da UEL
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