Já contei a vocês sete que a imagem mais remota que trago na memória é a de meu pai lendo um livro na poltrona da sala. Morávamos em um pequeno apartamento alugado na Alameda Barão de Limeira, em São Paulo. Como o apartamento só tinha um quarto, eu dormia na sala, em um bicama com listras laranjas, marrons e pretas. O banheiro, também único, tinha uma pequena banheira branca, que eu achava o máximo. Gostava de brincar nessa banheira; o frasco de Shampoo Johnson’s amarelo (“Chega de choro”) transformava-se em um submarino nuclear, pilotado pelo Almirante Nelson. Mas, como era preciso economizar água, e “seu pai não é sócio da Sabesp nem da Light”, Almirante Nelson só trabalhava aos sábados. Nos outros dias, chuveiro normal.

Meu pai lia na sala. A poltrona ficava ao lado da varanda; a luz do abajur branco se projetava sobre as páginas que, de tempos em tempos, ele virava. Como nosso apartamento ficava no primeiro andar, a varanda se abria para uma laje de estranha coloração verde-escura, que vinha a ser o teto da lavanderia do japonês. Sobre essa laje, frequentemente passeava um gato cinzento, talvez morador de algum prédio vizinho. Era um gato como são quase todos os gatos: altivo, cauteloso, desconfiado. À noite, seus dois olhos refulgiam no escuro daquele miolo de quadra, fazendo companhia às luzes dos prédios do centro da cidade e às poucas estrelas do céu paulistano. De manhã, depois de tomar café, meu pai me levava para a varanda e dizia, apontando em direção ao vizinho felino:

— Olha o gato. Xípi, gato!

Quase cinquenta anos depois, eis que eu vim a encontrar um parente daquele gato aqui na Rua Assunção. Todas as manhãs, levando o Cisco para passear (ou é ele que me leva?), via o gatinho da Toca do Bode. Cisco jamais se incomodou com a presença de gatos; mas o gato da Toca do Bode se incomodava com a presença do Cisco. Quando nos aproximávamos de seu território, ele avançava em nossa direção, como quem diz: “Aqui o dono sou eu”. Nesse momento, eu repetia, com emoção e saudade, a frase de meu pai:

— Olha o gato. Xípi, gato!

Nas noites de sexta-feira, o gato da Rua Assunção — que era vira-lata, mas parecia siamês — circulava garbosamente por entre as mesas dos clientes do bar, ganhando alguns afagos e petiscos. Muitas vezes, eu o via no colo da D. Helena, dona da Toca (juntamente com suas filhas Nair, Helô e Beth).

Pois na última sexta a Helô me deu a triste notícia: o gatinho da Toca do Bode foi atropelado ao atravessar a Avenida Higienópolis. Esta crônica é uma homenagem a ele e a todos esses bichinhos que ajudam a alegrar a nossa vida — na Alameda Barão de Limeira, na Rua Assunção ou em qualquer lugar do mundo.

— Olha o gato. Xípi, gato!

Ah, pai. Como eu gostaria de tomar uma cerveja com você lá na Toca.