1.Acabou a luz. Tenho um compromisso importante no último andar e estou em cima da hora. Preciso subir pelas escadas.

2. Chego ao primeiro andar. Minha vista demora um pouco a se acostumar com a penumbra. Uma pequena mancha branca aos poucos vai se tornando o que é: meu cachorro Ace. Não late, não chora, não pula, não faz a algazarra de costume (achávamos que ele um dia fosse aprender a falar). Sei que está vivo pela expressão melancólica de seus olhos: reluzem na sombra. Mas tenho que ir. Percebendo minha saída, ele late apenas uma vez. Adeus, Ace.

3. Vencidos mais dois lances, encontro um homem muito parecido comigo. Está com um uniforme inteiramente preto. Mostra-me uma surrada carteira da Federação Paulista de Futebol e um apito prateado. Tem a voz mansa e os dedos nodosos. O jogo vai começar. Adeus, vô Briguet.

4. No novo patamar, Maria está com uma serra de marceneiro na mão. Corta a ponta da mesa de cozinha. “Maldita ponta! Fez um galo na cabeça do meu netinho!” Até mais, vó. Depois eu venho tomar o café da tarde com você.

5. Dois rapazes conversam um andar acima. Bonfim continua alegre, com aquela risada nervosa e os olhos quase translúcidos na cara redonda. Conta-me uma piada infame e solta um bom trocadilho. França me fala das últimas; está menos magro e parece saudável. Lembramos mais uma vez do dia em que ele foi estudar semiologia na república e me encontrou bêbado com oclinhos de John Lennon, dizendo: “Vou fazer segunda chamada, amigo Francelino!”

6. Irmã Ângela e Madre Lourdes estão ajoelhadas. Rezam. Quando notam minha presença, levantam-se lentamente. “Reze o terço todos os dias, meu filho...”, diz Irmã Ângela. “Assim Maria vai lhe dar proteção!” Madre Lourdes apenas me observa por trás dos óculos redondos. Eu não lembrava que ela era tão pequena e magra.

7. O gordo Zé Fernando, professor de matemática, acaba de resolver um problema no quadro e escreve ao final: c.q.d. Traduz: “Caramba, que difícil!” (Não é bem “caramba” que ele diz.) O doutor em sociologia política diz: “Não adianta; seus textos não têm o mínimo rigor científico”.

8. Estou um pouco cansado. Preciso de água. Um moço de 27 anos estende-me um copo gelado. Reconheço alguns traços em seu rosto: é meu filho que não nasceu. Um casal de irmãos – ele um pouco mais velho que eu; ela com 40 anos incompletos – encontra-me ali também.

9. Vou fazer 50 anos, já não sou mais menino para subir estas escadas. O coração começa a bater forte. No andar de cima, há uma reunião de figuras circunspectas: Robespierre, Marx, Bakunin, Lênin, Trotsky, Victor Serge, Che Guevara, Cláudio Abramo. “Por que você nos abandonou?”, pergunta Marighella, que carrega uma metralhadora.

10. Chego ao terraço. Há uma mesa com vista para o poente e um isopor cheio de gelo. Sobre a mesa, uma cerveja e dois copos. Meu pai diz: “Oi, Paulão”.