Um século de história do cinema separa o diretor alemão Friedrich Wilhelm Murnau, diretor em 1923 de “Nosferatu, Uma Sinfonia de Terror” (primeira adaptação do romance “Drácula” de Bram Stoker para as telas) desta versão homônima dirigida por Robert Eggers atualmente fazendo sucesso pelo mundo.

Murnau não pagou um centavo de marco pelos direitos de adaptação, razão pela qual o filme foi legalmente perseguido. E foi realmente uma sorte quase sobrenatural que a obrigação legal de queimar todas as cópias existentes não tenha sido consumada: o passar das décadas transformou o filme pioneiro não somente em clássico, mas em verdadeiro totem, um preâmbulo ao gênero de terror que explodiria precisamente dez anos depois, na versão de “Drácula” da Universal Studios.

Respeitando o original cena por cena, o também alemão Werner Herzog realizou sua própria versão da história em 1979; e agora é a vez do segundo remake oficial, cortesia do americano Robert Eggers, amante irrestrito da história e cineasta consciente do status do filme seminal.

Vampirismo no cinema

A pergunta pode estar na cabeça do espectador: por que não deixar os clássicos de lado ? A verdade é que o vampirismo no cinema, e na história de Stoker em particular – o pai de todos os vampiros modernos –, imita o caráter imortal do personagem hematófago, e nenhuma estaca física ou imaterial parece capaz de encerrar seu ciclo de mortes e ressurreições. Este “Nosferatu” vintage 2024, em exibição em Londrina, é fiel ao roteiro de Henrik Galeen de 1922, mas injeta nele elementos presentes no romance de Stoker.

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A trama é muito familiar: o ano é 1838 e o corretor de imóveis Thomas Hutter (Nicholas Hoult), é enviado a uma cidade romena para fechar um contrato imobiliário com um certo Orlok ( irreconhecível, Bill Skarsgård), nobre de “linhagem rançosa”, conforme definido em um diálogo. Thomas deixa sua esposa Ellen (Lily-Rose Depp) em casa, que logo após se despedir do marido começa a ter episódios de sonambulismo e sonhos terríveis que pareciam enterrados no passado adolescente da personagem.

Claro que a histeria feminina rapidamente diagnosticada nada mais é do que o chamado do vampiro, que rapidamente parte para a cidade levando consigo a peste, os ratos e sua presença sinistra. Romântico e gótico, como nas versões anteriores, Nosferatu segundo Eggers visa reforçar e realçar o vínculo espiritual e carnal entre a bela e a fera, com todas as arestas emocionais e sexuais possíveis à mostra.

Os protagonistas

Ao contrário das versões mais fálicas dos Dráculas dos atores Bela Lugosi, Christopher Lee ou Gary Oldman, e dos seus muitos derivados, aqui a aposta não pode competir com o poder do desejo, uma lição que Eggers tira diretamente do filme original e que se sustenta até o fim. O Conde Orlok de Skarsgård se afasta da aparência abertamente repulsiva de Max Schreck e Klaus Kinksi nas versões de Murnau e Herzog. Entre as sombras, os traços marcantes e o bigode profuso lembram a imagem do príncipe romeno Vlad Tepes que serviu como uma das inspirações diretas de Stoker, embora o detalhe da cabeça e das costas dê um clima pútrido e não exatamente sedutor.

O romance de Stoker atingiu duramente o duplo padrão vitoriano, mas também, como exemplo tardio de romantismo literário, trouxe ao debate o conflito entre ciência e magia, entre razão e superstição. O personagem do professor Von Franz (Willem Dafoe) reúne essa batalha, sendo um pária maluco que realmente sabe que as forças do mal não podem ser explicadas pela razão. Com ele, nós, espectadores, entramos plenamente, e convencidos, no mundo do terror gótico romântico que “Nosferatu” propõe.

O conde Orlok, finalmente, não é uma figura bonita nem um galante sedutor. Sua atração não é física, o que altera a ideia cinematográfica já instalada sobre o personagem. Recupera a tradição vampírica e a ideia romântica de que o mal corrompe e destrói tudo, sendo apenas o sacrifício definitivo e altruísta a única forma de libertação. Só existe uma heroína nesta nova versão, e é a bela Ellen, a única capaz de conquistar e destruir a fera.

Praticamente tudo o que está na tela é estilo, puro e intenso: claros-escuros que em algumas cenas evocam e reproduzem a pintura expressionista do início do século XX, performances de destaque distantes do naturalismo, da fantasia e do horror como reflexo de anseios, medos e repressões cem por cento humanos. Eggers, o esteta cerebral/emocional de “A Bruxa”, “O Farol” e “O Homem do Norte” continua sendo um dos cultores e “cultistas” mais pessoais e ambiciosos do cinema de terror transcendente ou autoral dos últimos tempos.