Londrina, 3 de agosto de 2013. Por volta das 21h daquele sábado, um homem em um suposto surto psicótico invadiu a casa de dona Vilma Santos de Oliveira, na zona oeste de Londrina, e a assassinou a facadas, juntamente com a mãe, Allial de Oliveira dos Santos, e a neta dela, Olivia Santos de Oliveira. Elas tinham 63, 86 e 10 anos. Desde então, o movimento de igualdade racial de Londrina segue órfão, em luto e cobrando por justiça, mas ainda ativo na busca por direitos.

Mukumby era conhecida por militar politicamente por ações afirmativas - fossem elas raciais ou sociais - em universidades públicas. De acordo com José Mendes, membro do CMPIR (Conselho Municipal de Promoção da Igualdade Racial) e amigo próximo, ela já levava tais assuntos para as mesas de discussões desde a juventude.

“O [secretário municipal de Cultura] Bernardo Pellegrini conta uma história da dona Vilma muito interessante. Ele fala que, na década de 1960, estavam em uma reunião da Ules (União Londrinense de Estudantes Secundaristas) e ela apareceu. Depois de várias discussões, perguntaram o que ela queria, e ela disse ‘estou aqui para saber como é que eu consigo colocar negros na universidade’. Na década de 60, a dona Vilma já estava falando de cotas. Se analisar isso, é à frente do país todo e até dos EUA”, comenta Mendes.

O secretário de Cultura confirmou a história à reportagem e também ressaltou que a gana de provocar mudanças na sociedade em que vivia era algo que sempre estava presente na vida de Mukumby, mesmo quando ainda era reprimida pelo medo da família.

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“O tio que a criava tinha muita restrição a essas participações políticas. Era um momento de contestação. Isso aí para um branco, de classe média e universitário, tinha um peso, mas para um preto e pobre se meter com isso, com repressão policial, era bem complicado”, pondera Pellegrini.

O músico e jornalista também diz que a educação se tornou pauta principal das ações de Mukumby por influência do trabalho da mãe dela. Com olhos sempre atentos à realidade em sua volta, a então adolescente passou a questionar a maneira como as coisas estavam dispostas socialmente.

“A mãe dela, a dona Allial, era auxiliar de serviços gerais no [colégio] Hugo Simas. Então, ela cresceu vendo e percebendo que a escola era o grande degrau que a comunidade preta precisava subir para sair da condição de opressão em que sempre esteve. Isso era um sonho para ela”, conta o secretário.

MÃE DAS COTAS

Todos os entrevistados foram unânimes ao afirmar que as cotas para estudantes de escola pública e autodeclarados negros da UEL (Universidade Estadual de Londrina) “nasceram” na cozinha de dona Vilma. Em 2003, a militante promoveu um almoço em sua casa, onde recebeu a então reitora da universidade, Lygia Pupatto, e o presidente da Fundação Cultural Palmares, à época, Zulu Araújo.

“Foi antes mesmo do governo federal discutir isso. Aí, [na UEL], [o projeto] foi aprovado em 2004 e a primeira turma foi em 2005. Londrina foi o primeiro [município] do Paraná, o primeiro do interior e ficou à frente de 24 capitais brasileiras [na implementação das cotas]”, relembra Mendes.

Maria Eugênia de Almeida, ex-presidente da CMPIR, ressalta que a reunião foi precursora em todo o país e que a liderança de Yá Mukumby foi essencial para que as cotas fossem implantadas.

Mesmo desagradando parte da sociedade, a UEL adotou as cotas sociais e raciais em 23 de julho de 2004
Mesmo desagradando parte da sociedade, a UEL adotou as cotas sociais e raciais em 23 de julho de 2004 | Foto: Roberto Custódio

"Foi através de sua liderança que a luta adquiriu a dimensão de coletividade. Agregou grande parte do movimento negro, articulou, reuniu-se com pessoas-chave [...] Desse encontro, nasceu o Seminário de Cotas, com a presença de muitas autoridades e lideranças negras nacionais e estaduais”, revela Almeida.

A busca por direitos para estudantes pobres, negros e periféricos foi alvo de críticas e protestos na época. José Mendes lembra que, quando o assunto foi discutido na Câmara Municipal, um diretor de colégio de elite londrinense liberou os alunos para irem protestar contra a medida.

“Estavam municiados com cartazes e frases contra as cotas. Nos momentos que alguém do movimento falava, eles vaiavam. E teve uma cena que eu denunciei, em que um aluno fez um gesto de arma com a mão, simulando dar tiros na dona Vilma, como se quisesse matá-la.”

Mesmo desagradando parte da sociedade, a UEL adotou as cotas sociais e raciais em 23 de julho de 2004, por meio da Resolução nº 78/2004. A nível nacional, a Lei de Cotas só foi criada oficialmente em 2012, por meio da Lei nº 12.711.

O forte engajamento político fez Mukumby ser reconhecida em vida na Câmara Municipal de Londrina, onde recebeu, em novembro de 2002, o prêmio Zumbi dos Palmares pelo seu destaque na luta contra o racismo. Após a sua morte, também foi reconhecida, em dezembro de 2013, como Cidadã Honorária do município. Recentemente, em novembro de 2022, o Conselho Universitário da UEL concedeu à militante o título de Doutora Honoris Causa in memorian.

CLAMOR POR JUSTIÇA

Mendes diz que as cenas da tragédia que ceifou a vida de Mukumby nunca saíram de sua mente. “Eu recebi uma ligação e desabei. Tive o desprazer de ser o primeiro a entrar e ver aquela cena de crime.” Ele ainda conta que o impacto da morte foi gigantesco nas comunidades negras, políticas e de religiões de matriz africana.

“Causou um vácuo muito grande no nosso grupo político. Até hoje, a gente não conseguiu preencher com uma liderança à altura dela, e nem sei se vai ser preenchido. Ela faz muita falta”, conclui Mendes.

A insatisfação com os resultados do processo criminal do massacre na casa dona Vilma é grande, principalmente para amigos próximos e parentes. Eugênia Almeida, que tinha uma relação de intimidade com Mukumby, reverbera que o crime teve motivações políticas e religiosas.

“Muitos de nós acreditávamos que a morte dela foi causada por todas as intolerâncias contra as quais ela lutou. Morreu por ser mulher, por ser negra e por ser Yalorixá [mãe de santo]”, supõe Almeida.

Uma familiar, que não quis ser identificada, revelou à reportagem que também segue inconformada e que a dor do luto nunca passou.

ACIMA DE TUDO, MÃE DE SANTO

Militante, cantora, cozinheira, poliglota, politizada e, acima de tudo, mãe de santo. Mukumby sempre utilizou o Candomblé, a sua religião, para unir todos esses elementos. Por meio dos terreiros, destacava sempre o papel de resistência dos templos religiosos na preservação dos valores culturais negros.

Buscando defender suas ideias e crenças – políticas e/ou religiosas -, participou da criação de diversos movimentos pelo Brasil, como a do Cenarab (Centro Nacional de Africanidade e Resistência Afro-Brasileira), fundado por religiosos da tradição de matriz africana, no 1° Enen (Encontro Nacional de Entidades Negras), em 1991, em São Paulo.

Também foi a responsável pela fundação da AABRA (Associação Afro-Brasileira) de Londrina, com a finalidade de captar recursos para entidades sociais, culturais e religiosas.

SERVIÇO

As memórias contadas por Bernardo Pellegrini podem ser conferidas na íntegra – juntamente com diversas outras histórias sobre o legado de Yá Mukumby - no livro abaixo:

Livro: Dona Vilma: Cultura Negra Como Expressão de Luta e Vida

Organizadores: Maria Nilza da Silva e Jairo Queiroz Pacheco

Editora: UEL

Ano: 2014