Seu miado era como se pedisse socorro e piedade em cima do telhado da casa vizinha, quando éramos recém chegados a uma cidade próxima a Londrina para onde fomos transferidos a trabalho. Envolvidos com sua atitude, prontamente, oferecemos comida àquela gata que nos comoveu.

Imagem ilustrativa da imagem Dedo de prosa | Preta
| Foto: iStock

Foi aí que começou a trajetória de Preta em nossas vidas. Ela era uma gata de rua, acho que era tratada pelos vizinhos: um hotel e uma lanchonete ao lado, além de outros moradores próximos. Acredito que ela tinha uma vida muito feliz, com muita liberdade, junto com mais alguns gatos.

A moça que realizava nossos serviços domésticos começou a tratá-la muito bem e acho que foi aí nosso grande erro. Preta começou a perder sua liberdade. E talvez sua felicidade.

Se apegou a nós, começou a dormir em nossa garagem e aguardar a alimentação. Desaparecia por algumas horas e as vezes até dias, mas voltava.

No início, quando viajávamos, ainda não nos preocupávamos, porque entendíamos que ela sabia se virar. Quando voltávamos, ela estava meio magra, mas aguardando firme nosso retorno. Foi aí que percebemos que alguém precisava alimentá-la em nossa ausência. Preta havia perdido sua habilidade de se virar sozinha.

Se passaram 04 anos. E quando voltamos a residir em Londrina, aposentados, os vizinhos imploraram para que trouxéssemos Preta. Aí começou o dilema. Levamos ou não Preta? Ela perdeu a capacidade de viver sozinha. Ficamos preocupados que ela não sobreviveria novamente na rua. Trouxemos.

Ficou presa por mais de um ano. Em uma casa com muros altos onde ela mal enxergava o céu. Preta observava o mundo através de uma pequena grade abaixo do portão eletrônico todo fechado. Miava para as pessoas que passavam na rua. Uma moça que trabalhava numa loja próxima, um dia me confidenciou, que conversava com ela através da grade.

A ânsia de Preta era escapar a qualquer custo. Acredito que na esperança de encontrar o seu velho mundo. Algumas vezes conseguiu, quando abríamos o portão para sair com o carro. Acabava voltando frustrada.

Quando terminamos a construção de nossa casa num condomínio fechado, mais uma aventura para Preta. No início, ela ficou muito desconfiada, miava muito. Mas até que se acostumou rapidamente. Agora vive com certa liberdade. Mas entendo que ela anseia muito para retornar ao seu velho mundo. Olha os muros altos que circundam o condomínio, e observa muito.

Toda vez que saímos para caminhar, ela sai atrás de nós, acreditando talvez que a levemos de volta para algum mundo que ela possa viver novamente em liberdade. Não sei...

Acho que nossa vida é muito parecida com a de Preta. Sacrificamos nossa liberdade e espírito de aventura para nos apegar a algum lugar que nos ofereça segurança e bem estar. Um emprego, uma casa, uma cidade. Somos obrigados a seguir conceitos, tradições, regras, normas, redes sociais, tecnologias, televisão, esquerda, direita.. E por aí vai...

Pobres de nós, pobre da Preta...

José Cezar Vidotti é economista, trabalhou na Coamo como gerente de entreposto por esse Paraná afora. Agora aposentado, voltou a residir em Londrina.

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