A fantasia de que todo mundo gosta de você, porque todos curtem suas postagens, ganha um caminho mais curto
A fantasia de que todo mundo gosta de você, porque todos curtem suas postagens, ganha um caminho mais curto | Foto: Shutterstock

Embora a sociedade esteja em constante evolução, certos aspectos da vida humana não mudam. É o caso da amizade. Reconhecida como virtude moral ou cristã entre os filósofos, o pensamento não sofreu tantas alterações na contemporaneidade, mas a introdução da tecnologia na sociedade modificou a forma de se comprometer com o outro.

Segundo Reginaldo Bordin, professor de filosofia da PUC-PR (Pontifícia Universidade Católica do Paraná), as redes sociais não só criaram meios rápidos de comunicação e engajamento, como também a exclusão. “Desconectar alguém, bloqueá-lo, pode indicar a superficialidade das relações e não compromissos firmados segundo uma identidade, um laço amoroso”, afirma. Zygmunt Bauman apontou a liquidez dos vínculos das amizades temporárias percebidas nas redes sociais, cujos relacionamentos não se aprofundam em bases duradouras. O que demonstra certo descaso e falta de apego.

“A gente tem uma sensação de amizade fácil... Amizade não é fácil, amizade é um vínculo cultivado, não é automático”, argumenta o escritor Fabrício Carpinejar. O clique robotizado das relações contemporâneas não conquistam o autor quando se trata de vínculos afetivos profundos. “Toda amizade é e sempre será artesanal. Eu tenho vários conhecidos, mas amigos eu telefono, eu me encontro pessoalmente. Amigo é aquele que você precisa ouvir a voz.”

POR OUTRO LADO

“A internet é excelente para pessoas que já se conhecem”, defende Denise Tinoco, psicoterapeuta e coordenadora do curso de Psicologia da UniFil. Reencontrar velhos amigos é uma das vantagens proporcionadas pela tecnologia, diminuindo distâncias entre aqueles que já criaram seu vínculo pessoal e que utilizam essa forma de comunicação para estarem mais próximos. No entanto, quando se trata de novas amizades, é preciso ter cuidado. “Você vai projetar todas as suas fantasias idealizadas naquela pessoa e corre muitos riscos”, afirma.

Outro risco é cair na ilusão dos likes e número de amigos. “Skinner (Burhus Frederic) falava que o comportamento responde a um reforço, então, se você já uma pessoa de autoestima baixa e de repente inclui várias pessoas que nem sabe quem são como amigas nas redes sociais, essas pessoas, quando curtem uma postagem, estão te dando um reforço, aumentando sua autoestima”, explica Tinoco. E a fantasia de que se tem muitos amigos e que todo mundo gosta de você, porque todos curtem suas postagens, ganha um caminho mais curto.

BOLHA

Quem não se surpreendeu com a opinião de um amigo nas redes sociais que atire a primeira pedra. A polaridade cada vez mais atenuada (principalmente quando o assunto é política) desfez no on-line amizades do off-line. Porém, criar bolhas de pensamentos convergentes não é nem saudável, nem maduro. “Os donos da verdade correm o risco de acabar com amizades porque o outro não pensa como eles, mas isso é sinal de muita imaturidade ou até transtorno, porque a pessoa saudável sabe conviver com o diferente”, argumenta a psicoterapeuta.

A seleção é compreensível quando se trata da questão de caráter e valores. “Aí você tem o direito de não querer se relacionar com um assassino, por exemplo, mas quando a pessoa é muito narcísica, só aceita se relacionar com as pessoas como ela, tanto na internet, como pessoalmente. É uma posição de esquizoparanoide: tudo que presta está com ela, tudo que não presta está fora dela”, acrescenta Tinoco.

E, infelizmente, essa atitude está cada vez mais comum em tempos atuais, ato que merece atenção, segundo Bordin. “É fácil conectar e desconectar segundo interesses. É um fator preocupante, porque a amizade deixa de ser uma virtude que fundamenta relações mais sólidas para ser sustentada por necessidades, aparências, interesses ou prazeres que mudam de direcionamento constantemente”, afirma.

DORES

Apontada como dimensão nova e perversa pelo professor, a atitude, para ele, não é necessariamente elaborada pela tecnologia, mas pela constituição da sociedade de consumo, em que tudo se compra e se vende. “Por isso, o pensar filosófico deve extrapolar essa condição para repensar as vantagens da amizade, como indicava Montaigne, porque boas amizades suavizam as dores que temos nesse mundo e nos oferecem a possibilidade de sermos bons e felizes”, finaliza.

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