A ação da Secretaria Estadual de Educação (Seed) de recolher o livro "O Avesso da Pele", de Jeferson Tenório, das escolas públicas do Paraná, é um ato que está na contramão da literatura.

Premiado com o Jabuti de melhor romance em 2021, "O Avesso da Pele" é um livro sobre o racismo, "abordado em todos os seus tons e nuances", como escreveu Marcos Losnak, crítico literário da FOLHA, em sua coluna Leitura, quando o livro foi premiado.

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É estarrecedora a notícia de que uma obra que integra o Programa Nacional do Livro (PNLD) - que compra e distribui livros didáticos para a rede pública do País - e que é indicada aos alunos do Ensino Médio, passe por esse tipo de filtro constrangedor, numa indicação de que estamos dando marcha à ré, em vez de avançar no entendimento do que é literatura e do que é educação.

Até esta sexta-feira (8), o livro deverá ser recolhido em todas as escolas públicas para passar por "análise pedagógica e posterior encaminhamento", segundo a Seed.

O ato que repercutiu na Assembleia Legislativa do Paraná, com o livro sendo alvo de agressões por parte de parlamentares que possivelmente não o leram mas o consideram "um lixo", é de uma arbitrariedade que reedita dias sombrios no Brasil. Numa ação francamente populista, deputados que ganharam eleições com sua projeção de "cantora gospel" ou "pastor" dão mostras de como a política e a religião não combinam, a não ser para formar uma mistura nefasta de valores que permeia a crítica sem conhecimento. O que falta é preparo para avaliar a literatura como literatura, a educação como educação.

Um livro que aborda as mazelas do racismo e da violência policial, temas centrais da obra de Tenório, decerto não interessa aos que nunca acordaram com a notícia de que um membro de sua família foi assassinado pelas forças do Estado ou soube que seu filho sofreu racismo ao frequentar um shopping destinado aos brancos, segundo a concepção mais tacanha de segregação racial, amplamente difundida e velada num País onde a violência contra os negros assombra.

Em 2021, ano da publicação do livro "O Avesso da Pele", de cada 10 pessoas assassinadas no País 8 eram negras, segundo os dados do Atlas da Violência, publicação anual do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA) que compara:

“Duas pessoas com as mesmas características (escolaridade, sexo, idade, estado civil), que moram no mesmo bairro, sendo uma negra e uma branca, a primeira tem 23% a mais de chances de ser assassinada em relação à segunda. Ou seja, além dos canais indiretos, por meio dos quais o racismo estrutural opera para legar uma maior taxa de letalidade para a população negra, há o racismo que mata, operando diretamente na letalidade contra negros, por meio de um processo atávico de desumanização, que imprime uma imagem estereotipada do negro como perigoso, como pobre e bandido”, informa a publicação.

Jeferson Tenório: autor de O Avesso da Pele, livro premiado com o Jabuti em 2021, é professor de literatura do Ensino Médio da rede pública do RS
Jeferson Tenório: autor de O Avesso da Pele, livro premiado com o Jabuti em 2021, é professor de literatura do Ensino Médio da rede pública do RS | Foto: Carlos Macedo/ Sesc/ Divulgação

UMA OBRA IDEAL PARA A ESCOLA PÚBLICA

A julgar pela tragédia dos números, o lugar para que se estude e analise uma obra como "O Avesso da Pele" é justamente as escolas da rede pública do estado, onde estão os alunos negros e pobres, em sua maioria, que já sofreram ou sofrem a discriminação e a violência.

Destaca-se o fato de que o estudo da obra não é destinado a crianças do Fundamental, mas a alunos entre 15 e 18 anos que frequentam o Ensino Médio de onde o livro está sendo retirado em mais uma ação desconectada com a realidade, sendo que a literatura espelha e reflete sobre a realidade em obras de caráter social.

Segundo o professor, escritor e crítico literário Antônio Cândido "o direito à literatura deságua na justiça social". Justamente o que propõe a obra de Jeferson Tenório que apela para a justiça através de personagens que representam a parte segregada da sociedade brasileira. O personagem principal de seu romance, Pedro, é um jovem como um desses do Ensino Médio das escolas públicas, negro e pobre, que busca entender a trajetória de seus pais, descendentes de escravos, e suas implicações socais e afetivas na sua própria trajetória. Quem, a não ser os alunos das escolas públicas, poderia compreender tão bem essas relações a partir de um livro?

A obra de Jeferson Tenório não sofre censura apenas no Paraná, no Rio Grande Sul uma diretora de escola iniciou a "cruzada" justificando a censura da seguinte forma: "o livro tem vocabulários de baixo nível para serem trabalhados com estudantes do Ensino Médio". Uma máxima que hoje repercute na Assembleia Legislativa do Paraná na qual , certamente, obras de Jorge Amado - como Dona Flor e Seus Dois Maridos ou Capitães de Areia - não passariam pelo crivo dos parlamentaraes que se transformam em fiscais da sociedade mesmo onde a liberdade deveria ser um lugar de conhecimento: as escolas públicas.

Sem dúvida, se jogássemos nas bancadas da Assembléia obras de João Gilberto Noll, Jean Genet ou Georges Bataille é provável que muitos correriam como diabos da cruz, sem o entendimento do que é literatura.

Jeferson Tenório, autor de "O Avesso da Pele", classificou a atitude da Seed como "uma violência e uma atitude inconstitucional" nas redes sociais.

O escritor nasceu em Madureira, zona norte do Rio de Janeiro, em 1977. Aos 10 anos mudou-se para Porto Alegre, onde vive até hoje. Formou-se pela UFRGS como primeiro cotista negro décadas atrás. Foi professor de literatura na rede pública do RS por dezenove anos, é autor dos livros "O Beijo da Parede" (Sulina, 2013), "Estela Sem Deus" (Zouk, 2018) e "o Avesso da Pele" (Companhia das Letras, 2020).

Sua trajetória o credencia como autor e professor que conhece a realidade e a transforma em literatura e educação para alterar nossa leitura de mundo através das cicatrizes do preconceito sofrido em sua própria pele, um entendimento que vai muito além das máscaras da censura.

Imagem ilustrativa da imagem "O avesso da pele": PR volta ao tempo da censura aos livros
| Foto: Divulgação

* A opinião da colunista não reflete, necessariamente, a da Folha de Londrina.