Desde que foi lançado, em novembro de 2022, o ChatGPT tem sido assunto na imprensa, em rodas de pessoas que adoram tecnologia e entre os curiosos. O chatbot capaz de fazer textos originais sobre qualquer tema, da música à filosofia, do cinema à gastronomia, vem causando impacto em toda a cadeia do conhecimento.

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Junto com o impacto positivo surgem desafios: como analisar uma ferramenta que se presta a mil e uma utilidades, ao mesmo tempo que pode servir para acomodar, mais ainda, pessoas de diversas áreas que podem produzir conteúdos sem quase nenhum esforço reivindicando sua "autoria"?

O problema já acendeu um alerta nas universidades e nas escolas públicas dos EUA gerando uma contradição: professores estão revendo os métodos de ensino e, tendo em vista as facilidades do ChatGPT, pensam em retomar as provas orais e os ensaios escritos à mão para evitar o "favorzinho" da máquina em plena era tecnológica. No Brasil não é diferente, a Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e a Fundação Getúlio Vargas já anunciaram que estão revendo métodos de ensino para evitar a fraude aprimorada do copia aqui, cola ali.

Existem também orientações para se identificar textos feitos por robô como a análise de estilo; a observação da lógica (os robôs nem sempre atendem a 100% do quesito); padrões repetitivos ou estruturas de linguagem semelhantes. Tudo isso antes que uma big tech crie também uma ferramenta capaz de identificar textos feitos por inteligência artificial, o que já está em curso.

É fato que o chatbot não contextualiza informações e, pelo menos neste modelo 3.0, lançado pela OpenAI em versão até agora gratuita - na qual basta se cadastrar para utilizar - bilhões de informações que foram acumuladas em computadores, para a produção de textos, só foram armazenadas até 2021. Mas já existe a promessa de uma versão 4.0 - com armazenamento de trilhões de dados - que vai aumentar a eficiência.

A questão dos direitos autorais de um texto produzido por robô talvez seja um dos aspectos mais problemáticos em relação à novidade revolucionária. Podemos reivindicar a autoria de um texto para o qual só inserimos informações num prompt (comando) para que o chatbot crie o conteúdo seguindo as orientações?

Recentemente, o designer gráfico Ammaar Reshi lançou nos EUA o primeiro livro infantil feito por inteligência artificial: "Alice and Sparkle", feito não só com textos produzidos pelo ChatGPT, mas também ilustrado pela ferramenta Midjourney, que cria imagens lindas...mas, sob certo ponto de vista, sem dono! Artistas e escritores questionaram fortemente o livro de Reshi, que não consideram, de fato, um autor.

'Alice and Sparkle': primeiro livro escrito e ilustrado por ferramentas de inteligência artificial foi lançado por Ammar Reshi. Ele pode realmente ser considerado o autor?
'Alice and Sparkle': primeiro livro escrito e ilustrado por ferramentas de inteligência artificial foi lançado por Ammar Reshi. Ele pode realmente ser considerado o autor? | Foto: Reprodução

A FOLHA convidou o professor Miguel Contani, da Universidade Estadual de Londrina (UEL), além do editor, poeta e crítico literário Marcos Losnak para opinarem sobre o tema e fazerem um exercício: comparar um poema de Carlos Drummond de Andrade - "No meio do caminho" - com uma versão produzida pelo ChatGPT.

De nossa parte, consideramos também que a tal versão se assemelha a um texto de autoajuda, com um final que é quase uma "lição". O que está longe de uma criação poética, ainda que se considere a intertextualidade ou, pior, o plágio.

A impressão, por enquanto, é a que literatura ainda é terreno propício à capacidade e à sensibilidade humana, mesmo que a IA possa ajudar.

Seguem as opiniões dos dois entrevistados e nossos pedidos de desculpas a Drummond.

POLÊMICA NO MEIO ACADÊMICO

A utilização do ChatGPT por estudantes na produção de textos acadêmicos tem levado docentes do mundo a rever métodos convencionais de ensino. Para o professor Miguel Contani, que integra o Departamento de Comunicação da Universidade Estadual de Londrina (UEL), a novidade tecnológica chegou lançando o desafio permanente de saber se o autor redigiu por ele mesmo o texto ou se pediu para uma máquina realizar o serviço. “No ambiente escolar torna-se um fato preocupante, porque a autenticidade, além de duvidosa, passa a estar na dependência de encontrar pistas muitas vezes bem camufladas”, afirma.

Ele observa que apesar da eficiência e rapidez na produção de textos, algumas evidências indicam quando um texto foi produzido pelo ChatGPT. “Diversas simulações têm aparecido a respeito das produções na plataforma, e os resultados têm evidenciado o lado denotativo das expressões, em que as palavras e seus complementos combinam pelo sentido real que possuem", diz.

Ao analisar o poema "No meio do caminho", de Carlos Drummond de Andrade, em comparação à versão criada pelo chatbot e a literatura produzida pela IA de modo geral, ele observa: "Nas composições, sobretudo na função poética da linguagem, a conotação, as comparações presentes nos sentidos metafóricos e a falta dessa dimensão tornam os textos previsíveis, sem fascínio, secos, diretos, pouco relevantes, óbvios. Esse poderá ser, de imediato, um indício de procedência de um texto que não foi honestamente identificado com o seu autor”, exemplifica.

Miguel Contani, professor universitário: "Haverá impacto nas produções textuais, que não poderão continuar como forma exclusiva de comprovar autoria; apresentações escritas vão ter que ser acompanhadas de apresentação oral"
Miguel Contani, professor universitário: "Haverá impacto nas produções textuais, que não poderão continuar como forma exclusiva de comprovar autoria; apresentações escritas vão ter que ser acompanhadas de apresentação oral" | Foto: Acervo pessoal

Diante dessa nova realidade, Contani acredita que a operação para autenticar a validade dos textos deve ser inversa. “Tornam-se necessários testes de procedência, comparações, simulações. Haverá impacto nas produções textuais, que não poderão continuar como forma exclusiva de comprovar autoria; apresentações escritas vão ter que ser acompanhadas de apresentação oral, com a velha exigência de exposição sem leitura de script”, destaca.

Na avaliação do jornalista, editor de livros, poeta e crítico de literatura da FOLHA, Marcos Losnak será necessário tempo para entender as novidades trazidas pelo ChatGPT, principalmente em relação a textos literários. “Arte e tecnologia sempre andaram juntas. A arte sempre utilizou a tecnologia como ferramenta. A inteligência artificial está alterando isso. A tecnologia está deixando de ser uma ferramenta da arte para se tornar ela própria criadora de arte. A tecnologia está se constituindo como linguagem. Acho difícil hoje entender as implicações dessa novidade. Precisaremos de tempo para entender”, observa.

PRATICIDADE E ORIGINALIDADE

Losnak fez a seguinte avaliação do poema “No meio do caminho” criado pelo robô virtual da ChatGPT a partir do poema de Drummond: “A ferramenta faz questão de explicar tudo o que está dizendo. Parece que, para ela, a poesia precisa ter um sentido objetivo, racional, cheio de explicações. Literatura não é a arte das explicações. A subjetividade foi claramente suprimida dos versos criados pela inteligência artificial. Como recurso literário, a repetição de palavras e frases recebeu ordenamento para evitar ambiguidades. O sentido do único verso sem repetição utilizado por Drummond foi desprezado no poema criado pelo robô: “Nunca me esquecerei desse acontecimento / na vida de minhas retinas tão fatigadas”. A angústia subjetiva presente no poema de Drummond foi convertida em autoajuda objetiva. Parece um poema escrito por um adolescente que acabou de ler vários livros de autoajuda”, ressalta.

Losnak levanta ainda algumas questões práticas. “Seria um plágio? Se for, quem poderia ser processado? Os cientistas que desenvolveram a IA? A empresa detentora da plataforma e seus acionistas? O usuário que fez uso da plataforma? Ou o robô virtual? Se não for considerado plágio, quem poderia reivindicar os direitos autorais do poema? O usuário? A empresa? Os cientistas? O próprio robô?”, questiona. Ainda não há respostas.

Confira o poema original de Drummond e a versão do chatbot

No meio do caminho

(Carlos Drummond de Andrade)

No meio do caminho tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

tinha uma pedra

no meio do caminho tinha uma pedra....

...

Nunca me esquecerei desse acontecimento

na vida de minhas retinas tão fatigadas.

Nunca me esquecerei que no meio do caminho

tinha uma pedra

tinha uma pedra no meio do caminho

no meio do caminho tinha uma pedra.

*

No meio do caminho

(Versão do ChatGPT)

Havia uma pedra no meio do caminho

Não era pedra grande,

Nem tão pequena assim

Era só uma pedra

No meio do caminho.

...

Mas a pedra impedia

Que eu fosse adiante

Eu olhava para a pedra

E a pedra olhava para mim.

...

Até que, por fim

Decidi passar por cima da pedra

E continuei meu caminho

Sem olhar para trás.

...

Hoje, sei que aquela pedra

Não era um obstáculo

Mas sim, um aprendizado

Que me ajudou a crescer.

...

Confira tutorial de criação de textos e imagens por inteligência artificial:

...

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