Entrei pela porta iluminada e lá estava ela, no canto, serena. Vestia uma coroa brilhante e um manto azul felpudo, bordado.

A figura pequena e frágil de uma peça de madeira negra lustrosa, com mais ou menos uns 40 centímetros de altura, corpinho miúdo, adulado por mãozinhas carinhosas que ajeitavam um manto azul, royal? marinho? Celestial, talvez...

A luz alaranjada da tarde no campo produzia uma luminosidade etérea que entrava pelas frestas dos vitrais da capela e refletia nas pedras bordadas um brilho inconstante que mudava a cor do azul, de tempos em tempos.

“Precisamos trocar esse manto, tá envelhecido, um pouco curto”, disse calmamente uma das mulheres que ali estavam para o terço de domingo à tarde. Na capela haviam chegado três quando entrei com Durcinha. Elas abriram a capela e cuidavam da santa padroeira do sítio, Nossa Senhora Aparecida.

A história de vida das três se confundia com a história da santa e da capela dedicada a ela há mais de quarenta anos. “O manto precisa ser trocado”, comentou a devota que a ajeitava com carinho. Ela via o passar dos anos no tecido do manto sagrado da santa. “Ou levamos esse para consertar, podemos até mesmo fazer um outro, há pedras lindas que podemos bordar”, respondeu outra.

E, eu parada no canto, tímida, olhando o manto perfeito que os anos e a fé do povo preencheram de memórias as falhas que o tempo poderia ter causado à trama de seu tecido.

Talvez, eu não conseguisse ver o que os olhos dela viam. Ela quem tocava o manto e notava o fim da vitalidade do veludo útil. Ela quem havia visto o seu auge de quando o manto, recém-chegado de Aparecida do Norte, com cheirinho de roupa nova e a perfeição de um objeto recém confeccionado e bordado, vestia a amada santa pela primeira vez.

Mas para mim, expectadora forasteira, naquele espaço de amor, o manto azul tinha algo de – vou emprestar um sentido gustativo para expressar – umami, termo japonês que significa “sabor delicioso”. “Um dia tiramos o manto dela e levamos para a cidade”.

“Se despimos a santa como ela fica sem roupinha? O pensamento intrusivo de minha criança interior me levantou a dúvida, puerilmente, enquanto a adulta exterior se assustava com a possibilidade de ter feito essa pergunta em voz alta. Um momento tão genuíno não merecia um “desrespeito culposo” - vou emprestar, inapropriadamente, um termo jurídico que, se existisse essa expressão, significaria: “sem a intenção de desrespeitar”.

Levei a dúvida para a casa do sítio e perguntei a outros que me explicaram que a imagem que conheci tinha sua forma e seu manto em si mesma e que o que a cobria, era especial, um presente da gratidão de uma família que em toda sua jornada se sentiu abençoada pela presença poderosa de Ela, ali no canto, serena, vestindo sua coroa brilhante e seu manto azul, felpudo, bordado.

A figura pequena e frágil de uma peça de madeira negra lustrosa, com mais ou menos uns 40 centímetros de altura, corpinho miúdo, adulada por carinhosas mãos calejadas do trabalho que umedeciam o manto azul, royal? marinho? Celestial, talvez... e puíam com lágrimas de fé, de sonhos e pediam uma boa safra e uma vida melhor para os seus, sua mulher, seus nove filhos e todo o povo de sua terra.

O manto azul é uma crônica de Patrícia Maria Alves, jornalista e editora na Folha de Londrina, para o espaço DEDO DE PROSA, coluna semanal de crônicas literárias bucólicas publicada na Folha Rural todos os sábados.