Vivendo a infância no interior, hoje constato o quanto a população usava – ou ainda usa - um linguajar próprio, cheio de expressões e ditados. Na minha pequena cidade, como ainda nos dias de hoje costuma acontecer, as conversas ocorriam em casa, nas ruas, nas vendas e até nas cercas entre a vizinhança. Dona Mariquinha, moradora querida do lugar, era uma exímia proseadora. E não era apenas uma pessoa que gostava de usar expressões na conversa, usava e abusava! Tinha uma característíca própria : truncava, inventava, alterava e embaralhava ditados, provérbios, expressões idiomáticas em uso, enfim, contruía suas próprias versões, dentro da linguagem.

Não tinha grandes conhecimentos do idioma pátrio, mas também não era iletrada. Talvez disléxica, isso nunca foi investigado. Sabe-se que a dislexia é um distúrbio que leva o indivíduo a ter dificuldades em relacionar corretamente letras e sons e formar palavras e frases de maneira ordenada. A pessoa recebe a informação, mas na hora de reproduzi-la não o faz de modo concatenado ou lógico. E assim agia Dona Mariquinha. Famosa por suas expressões distorcidas. Quando reclamava do marido teimoso ao extremo, dizia: ele ainda vai me dar razão, não vou desistir, ‘’água mole em terra dura, tanto bate até que fura”. Vivia às voltas com uma penca de filhos para criar. Arteiros, terríveis , mas a mãe tinha a solução: ”é de pequenino que se torce o menino”. Se batia ou se torcia os meninos, ninguém via nem sabia. O fato é que criou todos dentro dos conformes.

Imagem ilustrativa da imagem DEDO DE PROSA: "Mas não é impossível!"
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Seu bordão preferido era : “Mas não é impossível uma coisa dessas!”. Todos concordavam usando a forma correta: “É mesmo, Dona Mariquinha! Não é possível!” . Para ela ”águas passadas não movem montanhas”. Pode ser que não movessem no seu tempo, Dona Mariquinha. Hoje, com o aquecimento global já instalado, não só movem como arrastam morros inteiros abaixo, apinhados de casas precárias, soterrando pessoas, causando tragédia, vítimas e causando estado de calamidade pública.

Quando dizia [ “cavalo dado não se olha o rabo” ficava sempre a dúvida no ouvinte. O rabo? Não são os dentes que devem ser olhados? Como indicador da idade do animal? Quando profetizava “Ladrão que rouba ladrão tem cem anos de prisão” a risada era certa. Onde isso? Em outro planeta? Porque aqui o sujeito rouba, fica impune, livre, leve e solto, candidata-se a cargo eletivo e tudo fica na mesma.

Às vezes, as confusões da simpática senhora pesavam . Como em “ o pior cego é aquele que quer ver!” Como?? Não haveria de querer? Pudera, hein! Judiação, Dona Mariquinha! Mas os moradores, que já estavam acostumados , tiravam de letra, ou de acento, ou de ponto de interrogação, sei lá …

Embora não seja tão comum, há casos até conhecidos de distorção de provérbios. Como a célebre frase do lendário Vicente Mateus, presidente do Corínthians, “Quem está na chuva é para se queimar”. Além de Dona Mariquinha , em nossa própria cidadezinha, havia um cidadão que ocupava um cargo político que o levava a fazer discursos frequentemente. Pessoa pública, plateia garantida, seu discurso truncado era aguardado com impaciência. Risos e olhares furtivos… a crueldade humana é sempre possível.

Na verdade, as expressões populares muito nos têm ensinado ao longo da vida, através dos tempos. E talvez, ao estilo de Dona Mariquinha, possamos afirmar: “Morrendo e aprendendo!”

Orides Navarro Gordan, professora aposentada, formada em Letras pela UFPR