Durante todo o dia, usuários de crack se revezam entre o semáforo e o mocó em um posto de combustíveis abandonado na Dez de Dezembro
Durante todo o dia, usuários de crack se revezam entre o semáforo e o mocó em um posto de combustíveis abandonado na Dez de Dezembro | Foto: Gustavo Carneiro



No final de uma tarde fria, o inferno queima na ponta dos dedos de Marcos (nome fictício). Cada moeda que consegue no semáforo o deixa um passo mais próximo da biqueira para conseguir a próxima pedra de crack. Ele é mais um dos quase dez moradores do posto de combustíveis abandonado na avenida Dez de Dezembro, ao lado do Terminal Rodoviário de Londrina. Como o efeito da droga é de curta duração, o vai e vem na região é constante.

Sorridente e fazendo alguma graça para os motoristas em busca de um trocado, Marcos muda a expressão ao ser abordado pela equipe de reportagem. "Não vou falar com vocês porque os parceiros podem pensar que estou dando informação para P2 e a coisa pode sujar pra mim, tá ligado?", diz, referindo-se ao Serviço de Inteligência da Polícia Militar, os policiais que trabalham descaracterizados. Durante todo o dia, Marcos e outros frequentadores da região se revezam entre o semáforo e o mocó; enquanto uns pedem dinheiro, outros vão para dentro do espaço abandonado para queimar mais uma pedra.

"A gente já se acostumou com eles [dependentes] aí. Se eu dissesse que eles incomodam, diretamente, estaria mentindo, mas sempre existe o receio por parte dos clientes de parar o carro longe de vista ou até de transitar por aqui", reclama um comerciante que preferiu não se identificar. Quem precisa chegar ou sair da rodoviária também reclama da falta de segurança. "Moro relativamente perto da rodoviária e poderia ir caminhando, mas prefiro não arriscar e peço um táxi pela questão da segurança. Conheço pelo menos duas pessoas que já foram assaltadas naquela região", diz a vendedora R.A, 22.

O problema se estende por uma grande faixa na região: vai desde a avenida Dez de Dezembro, passa pela Rodoviária, e vai até a praça Tomi Nakagawa, na avenida Leste-Oeste, e a mata do Marco Zero, na mesma via, no sentido oposto. Na zona de transição entre a região central e a zona leste da cidade, o consumo de drogas e pequenos furtos para sustentar o vício já se tornaram corriqueiros. No entanto, nos últimos meses, a violência tem aumentado. Na manhã de quinta (20), um corpo foi encontrado carbonizado dentro da mata do Marco Zero. As investigações apontam que a vítima tinha um possível envolvimento com drogas.

Diante da vulnerabilidade, muitos usuários relatam já terem tentado largar o vício, mas recaíram e voltaram para as ruas. Outros sequer acreditam na possibilidade da recuperação. Quem já passou pela experiência ou convive de perto com o tratamento garante que a reabilitação é possível. Em Londrina, a rede de assistência conta com o Caps-AD (Centro de Atenção Psicossocial – Álcool e Drogas), grupos de apoio e atendimento ambulatorial em entidades cadastradas no Comad (Conselho Municipal de Políticas Públicas sobre Álcool e outras Drogas), além de comunidades terapêuticas que fazem o tratamento por meio da hospitalização.

Para quem está em situação de rua, a ponte entre o vício e o tratamento muitas vezes é o serviço de abordagem feito pela equipe do Consultório na Rua, ligado à Secretaria Municipal de Saúde. Em um trabalho que exige muita paciência, os profissionais percorrem os bairros da cidade em busca de pessoas em situação de vulnerabilidade de forma geral. A partir do momento que o agente identifica que o paciente faz uso de álcool ou drogas, eles fazem o encaminhamento para um serviço da rede. "O primeiro contato é fundamental. É preciso fazer com que a pessoa se sinta gente, romper com uma série de preconceitos. De outra maneira, o trabalho não funciona", diz a coordenadora do Consultório na Rua, Juceli Pascoal Boaretto.

Ela reconhece que, para ser mais efetivo, o serviço teria que ter mais equipes. Atualmente, são seis profissionais para atender toda a cidade. "Claro que com mais gente poderíamos ampliar os resultados, mas temos feito o nosso melhor. O País vive uma crise grande e não conseguimos fugir desta realidade", lamenta. Apesar das muitas dificuldades, Juceli não desanima. E comemora os resultados. "Temos muitos casos de pessoas que hoje estão reinseridas na comunidade. Há também casos de pessoas que conseguiram ficar um tempo limpas, mas que depois voltaram às ruas por conta das drogas. Para elas, tem que ser dada uma nova chance para um recomeço", pondera.

‘Sem informação não há solução’
As recentes tentativas do poder público de acabar com a cracolândia em São Paulo dividiram opiniões. Enquanto um grupo defende a retirada dos usuários do centro da cidade com uso de internação compulsória, outros condenam o que chamam de "política higienista" do prefeito João Doria. O escritor e comediante londrinense Márcio Américo, autor do livro "Meninos de Kichute", que frequentou o espaço no início dos anos 2000, condenou o "Fla-Flu ideológico" em torno do tema. Segundo ele, a cracolândia levou 20 anos para se consolidar e não vai ser extinta em 20 dias.

O escritor diz não se atrever a indicar uma solução para o problema da dependência. Prefere deixar o assunto com os especialistas, mas, segundo ele, "sem informação não há solução". "A melhor forma de mudar o jogo é informar. Não adianta parar de passar propaganda de cerveja na TV, como querem alguns grupos, tem que ter uma estratégia. Precisa levar informação em especial para estudantes, conversar abertamente sobre drogas com os filhos desde a mais tenra idade, explicar que beber e usar drogas é muito bom, pode ser prazeroso, mas com o tempo a pessoa pode desenvolver dependência e acabar com a vida", enfatiza.

Desde a juventude na Vila Nova (área central), Márcio Américo conta que muita coisa mudou em Londrina. Nas últimas duas décadas, o crack se alastrou pelo interior do País. O escritor, que atualmente mora em São Paulo, demonstra preocupação com a situação da área de consumo de drogas na região da rodoviária. "Já se formou uma mini-cracolândia ali que só não é maior porque trata-se de um bairro familiar, pessoas moram ali. A verdade é que as autoridades sabem quem vende crack naquele local, quem são os habituées, mas sem um projeto efetivo que vise prender traficantes, iluminar estas áreas e colocar ali patrulhamento ostensivo, nada vai mudar, pelo contrário, tende a crescer e se multiplicar", aponta.

A reportagem acompanhou a rotina em torno da rodoviária nesta semana. Apesar do forte patrulhamento, com viaturas da Polícia Militar e da Guarda Municipal passando a todo o momento, a sensação de insegurança é grande. Segundo Daniel Sakama, diretor da Guarda Municipal de Londrina, apesar da desativação da base fixa no local há três meses, uma equipe atua exclusivamente na região. Segundo ele, o prédio do posto de combustíveis desativado e usado como mocó torna o problema mais crítico. "A GM tem feito o patrulhamento e inclusive tem atuado com base no programa 'Crack, é possível vencer', do governo federal, no sentido de um trabalho mais de assistência social", relata. "Este é um problema complexo que demanda esforços de vários setores da sociedade", acrescenta.(C.F.)

"A situação piorou muito com a cocaína e, agora, com o crack, chegou em níveis extremos", observa Tamarozzi, com a mulher Marisa
"A situação piorou muito com a cocaína e, agora, com o crack, chegou em níveis extremos", observa Tamarozzi, com a mulher Marisa | Foto: Roberto Custódio



Entidade conta com trabalho voluntário de ex-dependentes
Uma das primeiras entidades de Londrina a se dedicar ao tratamento de dependentes de álcool de drogas, a Fundação Tamarozzi conta com cerca de 300 voluntários em suas atividades. A grande maioria é formada por ex-pacientes que, ao se recuperarem, se comprometem a ajudar outras pessoas com dependência sem cobrar um centavo sequer. "É uma das nossas condições. Assim, mantemos um grupo consistente para poder ajudar quem precisa", detalha o idealizador da entidade, Luiz Carlos Tamarozzi.

Quando fundou a entidade, em 1980, a cocaína ainda não havia se disseminado em Londrina. "Tinha muita maconha e álcool. A situação piorou muito com a cocaína e, agora, com o crack, chegou em níveis extremos", observa. Tamarozzi calcula que a Fundação atenda cerca de 2.000 pessoas por mês. O tratamento não prevê internação. Quinze grupos de apoio funcionam todas as noites em vários bairros da cidade.

No fim de semana há atividades internas na entidade, localizada em frente à barragem do Lago Igapó, na zona sul. "Quem está começando entra aqui na sexta à noite e só sai na segunda de manhã. Nesse tempo tentamos convencê-los da importância de se manter longe das drogas", explica Marisa Tamarozzi, esposa de Luiz Carlos.

A rotina conta com atendimento psicológico ambulatorial, abordagem, reuniões de apoio, cursos de libertação, confraternização, cursos de atualização de conhecimentos, palestras, treinamentos e visitas domiciliares.

O programa de recuperação consiste em sete fases que visam convencer o dependente a mudar o estilo de vida. A fundação se destaca pelos fortes vínculos religiosos e pelo rigor à abstinência, inclusive do tabaco. É proibido fumar. "Quando decidi que ia proibir o cigarro, muita gente quis deixar o grupo, mas aos poucos muita gente deixou de fumar", orgulha-se Tamarozzi. "É um trabalho duro, mas nunca pensamos em desistir. Precisa ter muita disposição. O que nos conforta é saber que no final o esforço é recompensado", diz Marisa.(C.F.)