Símbolo de vida e prosperidade, ela mata a sede, refresca o corpo e traz alívio em dias quentes de verão. Presente em abundância no corpo humano, também está nos mares, rios e lagos. É a força motriz das hidrelétricas e tem papel fundamental na produção do alimento que vai parar na mesa de todos, já que quando cai após uma longa seca, o produtor levanta as mãos para o céu e agradece a dádiva atribuída a São Pedro.

Apesar de incolor, a água, que cobre mais de 70% da crosta terrestre, pode ser considerada um diamante azul. Para celebrar o Dia Mundial da Água, comemorado nesta sexta-feira (22), a FOLHA traz um recorte bem especial para os londrinenses: o Lago Igapó. Encravado no coração de Londrina, essa joia reflete o céu azul e a arquitetura da cidade.

Com 4,5 quilômetros de extensão, os quatro lagos que dão forma ao Igapó são um ponto de encontro em Londrina, seja por quem procura um local para a prática de atividade física ou para ter um momento de descanso e ar fresco frente ao maior cartão-postal da cidade.

“A água representa tudo para mim”. A fala do aposentado Edélcio Roberto Palhares, 63, membro há 33 anos da Patrulha das Águas, reflete a paixão que ele tem pela água. O gosto, segundo ele, veio através da convivência com o saudoso amigo João das Águas. Quando está remando no Lago Igapó ou em outro corpo d’água, o barulho dos pássaros e das corredeiras traz paz e a tranquilidade que tanto procura em meio à vida na selva de pedra. Toda semana, passa pelo menos seis horas dentro da água. “Ninguém vive sem água, nem nós, nem os pássaros, nem os animais, ninguém. Todo mundo depende da água”, pontua.

Criada em 1990, a Patrulha das Águas nasceu como uma associação de ambientalistas que buscavam auxiliar na fiscalização e preservação dos recursos hídricos de Londrina. Como um braço do município na denúncia de situações de poluição e imprudência, eles iam de barco para os cursos d’água para fazer uma patrulha e acompanhar de perto como estava a preservação. Apesar da redução no número de membros com o tempo, a Patrulha das Águas segue ativa, principalmente na denúncia de irregularidades.

“A gente unia o útil ao agradável. A gente remava nos rios e, ao mesmo tempo, fiscalizava. Era bem gratificante para a gente”, afirma. Hoje, o trabalho se concentra mais no Lago Igapó, já que a Patrulha das Águas tem uma escola de remo no local. “Não existe cuidado nenhum [com a água] porque hoje toda a população joga [lixo] na rua, que vai parar dentro do Lago [Igapó]. E a prefeitura também não faz a parte dela que seria drenar toda a sujeira ou evitar que a sujeira vá para para o lago”, cobra.

Apesar de cobrir mais de 70% da crosta terrestre, apenas 1% da água está disponível para consumo humano. Abundante e escassa ao mesmo tempo, nove países concentram mais de 60% de toda a água, sendo o Brasil um deles. Apesar da grande quantidade de água, por ser um país continental, o Brasil tem muitas áreas úmidas, como o Pantanal, assim como áreas muito secas, como o Sertão nordestino.

Muito bem servida no que diz respeito aos recursos hídricos, Londrina possui mais de 100 cursos d’água apenas na área urbana do município. Dentre todos, o destaque vai para o Lago Igapó, que tem 4,5 quilômetros de extensão e é localizado no coração da zona sul de Londrina. Formado por quatro lagos, o Igapó está inserido na bacia hidrográfica do Ribeirão Cambé, que compreende uma área de 76 quilômetros quadrados. A bacia nasce no trevo entre a BR-369 e a PR-445, em Cambé, e deságua no Ribeirão Três Bocas, em Londrina. Apesar do nome, grande parte do Ribeirão Cambé fica em Londrina.

Gerente de Resíduos Sólidos e Recursos Hídricos da Sema (Secretaria do Ambiente de Londrina), Thiago Domingos afirma que o Lago Igapó é o maior cartão-postal e símbolo de Londrina, além de ser o principal ponto de encontro social e da prática de atividades físicas e esportivas do município. “O Lago Igapó é a primeira coisa que uma pessoa tem em mente quando se fala em Londrina”, afirma, complementando que é difícil desvencilhar Londrina do Lago Igapó e vice-versa: “os dois se complementam”.

O projeto dos lagos começou a ser pensado em 1957 durante a gestão do prefeito Antônio Fernandes Sobrinho. Em 1959, o projeto saiu do papel com o barramento do Ribeirão Cambé, dando lugar ao Lago Igapó 1, que fica entre a barragem e a Avenida Higienópolis. Nos anos seguintes, os outros três lagos foram sendo formados, compondo os quatro que existem hoje. Já em 1985, foi construído o Aterro do Lago Igapó II, que quase virou um shopping. A ideia só não foi para a frente por conta da manifestação contrária de moradores da região, o que deu ao local, em 1998, o título de parque ecológico.

Pelo fato de o Lago Igapó fazer parte da bacia hidrográfica do Ribeirão Cambé, a geógrafa da Sema, Márcia Arantes, pontua que um papel de bala que é jogado no chão na região central da cidade vai parar no maior símbolo de Londrina. “Esse lixo [encontrado no Lago] vem do descarte diário que a gente verifica muito na rua”, aponta.

O assoreamento é outro problema que preocupa. Segundo Domingos, particularidades do lago faz com que os resíduos sólidos se acumulem com mais facilidade no fundo do Lago Igapó. “Como tem a barragem, ele tem uma capacidade de carga de sedimento baixa por estar em uma velocidade baixa de escoamento, então ele vai permitir que esse material acabe decantando”, relata.

E o assoreamento não é exclusividade apenas do lago, mas de todo o curso do Ribeirão Cambé. O gerente pontua que desde a nascente, em Cambé, até chegar em Londrina, a bacia passa por diversas propriedades vazias e por plantações de soja, que é uma atividade que contribui com o assoreamento, já que a terra revolvida é levada para dentro do curso d’água durante uma chuva.

A situação do assoreamento é mais grave no Lago Igapó 4, sendo que a lâmina d’água ali é de 1,5 a 2 metros de profundidade. No 2 e 3, a profundidade fica entre 2 e 3 metros; no 1, a lâmina d’água chega a até 4 metros.

“A gente está falando de uma bacia que passou e está passando por um boom imobiliário, principalmente próximo do [Lago] Igapó 2 e do Aterro, a gente tem uma exploração de águas subterrâneas também dentre desses locais e a perfuração de poços, [o que], invariavelmente, acaba mandando sedimento para o fundo do lago. E o resultado é esse, a gente tem movimentação de terra e a construção civil é uma das maiores responsáveis”, aponta.

Com a principal causa do problema nas mãos da construção civil, Domingos afirma que é necessário responsabilizar os culpados, assim como fazer com que o sedimento permaneça dentro dos terrenos. “A gente tem que fazer todos os esforços para evitar porque vai [parar no fundo do lago]. A gente está falando de uma argila, o nosso solo é bastante argiloso, e o fluxo da água carrega esse solo com muita facilidade, então a gente precisa trabalhar para diminuir o quanto antes porque se não a gente vai passar o resto da nossa vida buscando recurso público para fazer o desassoreamento do [Lago] Igapó”, argumenta.

Apesar de aumentar a lâmina d’água, o desassoreamento traz seus problemas, já que o material retirado do lago vai precisar ser descartado em outro local, o que precisa ser levado em conta. Além disso, o gerente garante que a ação também traz impactos para o lago, já que, com a retirada do sedimento, também vai embora todo o equilíbrio de fauna e flora lacustre. “É como se fosse uma operação dentro do Igapó e ele vai demorar para se recuperar”, salienta.

Domingos garante que planos e projetos de desassoreamento não faltam dentro da Sema. A execução, porém, esbarra nos custos. “A prioridade agora é o Lago [Igapó] ou a gente tem algumas outras situações que são prioritárias? O Lago pode esperar mais um pouco ou não?”, questiona. Além disso, segundo ele, outro ponto a ser definido é se o trabalho vai envolver todo o Lago Igapó ou apenas os pontos mais críticos. Segundo ele, no último desassoreamento, em 2002, o impacto para a região foi grande, já que o lodo faz com que o cheiro ruim se espalhe, assim como a movimentação de caminhões carregados de terra pela cidade é intensa em uma intervenção que leva meses.

Ao reforçar a importância da participação de todos na conservação de toda a bacia hidrográfica, Márcia Arantes afirma que a Sema está retomando o programa Rio da Minha Rua para trazer a conscientização de que tudo o que o que é feito no quintal de casa vai parar em uma galeria pluvial e, a partir daí, vai chegar até um curso d’água do município. “Hoje, só na área urbana, nós temos mais de 100 cursos d’água. É uma cidade que tem uma rede hidrográfica riquíssima. Eu sempre comento que o que Londrina tem de mais belo e de melhor é essa rede hidrográfica [porque] ela é importantíssima para a gente tratar mudanças climáticas”, aponta, complementando que o fato de ter dezenas de cursos d’água e áreas de preservação no meio da cidade colaboraram para o controle da temperatura de Londrina.

Ponto turístico

Em um passeio em família, o casal de empresários do ramo hoteleiro Bruno Botelho, 31, e Edilene Botelho, 36, e o filho, Lorenzo Botelho, 7 anos, gostam de aproveitar as manhãs para caminharem no entorno dos Lagos 1 e 2, finalizando o trajeto com uma água de coco ou um caldo de cana. “O Lago [Igapó] é muito bonito, mas por ser o cartão-postal de Londrina eu acho que ele merecia uma atenção especial”, admite, criticando a falta de acessibilidade do parque.

Profissional no ramo hoteleiro, ele aponta que Londrina não é uma cidade que oferece muitas opções de atividades para turistas, sendo que o Lago Igapó é o principal atrativo para os visitantes. “Eu percebo que os meus clientes quando vem para cá eles já perguntam onde fica o lago, se ele é legal, então a gente sabe que o turista em Londrina vem passear no lago”, detalha, citando que, na volta, o turista costuma parecer um pouco decepcionado por conta das altas expectativas.

Marcada pela sujeira e pelo entulho, o empresário lamenta a qualidade da água do Lago Igapó e afirma que falta vontade dos dois lados, tanto do poder público quanto da população.

Quem aproveita o lago

Sozinho ou em família, o importante é aproveitar um momento com a natureza. Caminhar pelo Lago Igapó II aos sábados já está na rotina do comerciante e vice-prefeito de Rolândia, Márcio Vinicius Gonçalves, 34. Ele afirma que o Lago Igapó é um marco não só para Londrina, mas para toda a região, principalmente por proporcionar esse contato com a natureza dentro da cidade. “Além de ser um lago muito grande, ele está em uma localização privilegiada, o que faz um diferencial muito grande para Londrina”, opina. “A água é tudo para nós, a água é o fator principal, ainda mais no tempo que a gente está vivendo de seca e de calor, então a água é fundamental, mas às vezes a gente não dá a devida importância”, admite.

João? Qual João? O das Águas

Luiz Figueira de Mello, 72, engenheiro agrônomo e ex-presidente do Ippul (Instituto de Planejamento de Londrina), caracteriza João como um “apaixonado pelas águas”, daí o nome pelo qual ficou conhecido: João das Águas. Ele ressalta que o amigo de longa data entendia que sem água não há vida e que o que o motivava era a indignação quanto ao descaso do poder público frente aos recursos hídricos. “Ele foi um grande ativista em defesa desse patrimônio hídrico”, afirma.

Natural de Novo Mundo, na Bahia, João Batista Moreira Souza, mais conhecido como João das Águas, desembarcou em terras londrinenses na década de 1980. Ambientalista, seu trabalho tinha como foco a luta em defesa dos recursos hídricos de Londrina e região. João das Águas morreu no dia 25 de março de 2022 vítima de um câncer.

Fundadores de programas como o Ecometrópole, visando a proteção dos recursos hídricos da cidade, Mello pontua que João das Águas afirmava que o rio começava no telhado da casa de cada um, motivando a criação de outro programa de conscientização ambiental, o Rio da Minha Rua. “Às vezes com muita raiva, com muita intransigência e com muita razão também, [ele ficava indignado] com o poder público inerte e sempre fazendo a mesma coisa”, reforça.

Um dos exemplos da inércia do poder público trata de uma decisão tomada no início dos anos 2000, que proibia a construção de loteamentos sem a devida retenção de resíduos nas bocas de lobo. “De lá para cá, nada foi feito, [mesmo] com toda a pressão sob a Prefeitura [de Londrina] e eles continuam fazendo avenidas sem retenção, loteamentos sem retenção e tudo isso vai parar no fundo do lago, no rio da sua rua”, explica. O engenheiro afirma que João das Águas estimulava o sentimento de pertencimento para que as pessoas conhecessem o que a região tinha de melhor, assim como a importância de uma comunidade em defesa dos patrimônios naturais.

Definindo o ativista como o maior ambientalista que o Paraná já produziu, ele afirma que João das Águas estava 100% do tempo em defesa dos recursos hídricos. “Ele era uma pessoa rara nos dias de hoje, que trabalhava em prol da comunidade e não recebia por isso. Era uma pessoa que cobrava muito dos pares também”, aponta.

Luiz Figueira de Mello é enfático ao afirmar que o amigo, se estivesse vivo, não estaria nem um pouco feliz com os rumos que a cidade vem tomando em relação à proteção e preservação dos recursos hídricos. “A Prefeitura continua fazendo a mesma coisa, ela não projeta avenidas, não exige das pessoas, não tem fiscalização no cumprimento da legislação”, aponta, complementando que também nada é feito em relação à permeabilidade do solo, cada vez mais necessária em uma realidade de mudanças climáticas e de chuvas torrenciais.

Além de não fazer a sua parte, o engenheiro agrônomo pontua que o poder público não cobra da população o que é de responsabilidade dela, colocando ela apenas como um mero consumidor ao invés de uma participante ativa na gestão. “Se cada um fizer a sua parte corretamente, com consciência, certamente haverá uma grande diminuição dos custos operacionais da cidade, [sendo que] esses recursos podem voltar para a comunidade em demandas sociais importantes”, detalha.

Mello, que tem na água sua prioridade de vida, afirma que, durante os passeios com João das Águas nos cursos d’água para prospecção e mapeamento, percebia o quão humano era o amigo. “Ele contribuiu enormemente com a formação de muita gente. Os próprios ambientalistas não entendiam o radicalismo dele, mas esse radical vem da origem da palavra, de raiz, de proteção daquilo que é base da nossa vida”, reforça, complementando que ele conhecia os cursos d’água como a palma da mão. “A necessidade de envolvimento do cidadão no processo de gestão da cidade e o poder público não só informando, formando e dando consciência, mas fiscalizando o cumprimento da legislação, esse é o papel do poder público”, ressalta.

Falta de acesso à água potável atinge 33 milhões no Brasil

Infelizmente, nem todas as regiões do país tem o privilégio de contar com uma bacia hidrográfica como a de Londrina ou um sistema eficiente de saneamento básico. No Brasil, cerca de 33 milhões de pessoas vivem sem acesso à água potável, segundo dados divulgados pelo Instituto Trata Brasil. O dado chama a atenção pelo fato de o país abrigar dois dos maiores aquíferos do mundo – o Guarani, localizado no Centro-Sul do país, e o Alter do Chão, na Região Norte.

A dificuldade de acesso a esse recurso natural abrange diversas regiões do país, segundo a presidente do Trata Brasil, Luana Pretto. “Somos um país muito rico em água doce. Mesmo assim, até mesmo os povos ribeirinhos do Rio Amazonas vivem problemas para terem acesso à água potável”, disse ela à Agência Brasil.

O Trata Brasil é uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) que desenvolve ações e estudos visando fomentar o saneamento básico no Brasil. Tendo como mote o Dia Mundial da Água, lembrado nesta sexta-feira (22), a entidade divulgou a 16ª edição do Ranking do Saneamento, levantamento que abrange os 100 municípios mais populosos do país.

“Em média, 33 milhões de pessoas não têm acesso à água do nosso país. Ou seja, apenas 84,9% da população é hoje abastecida com água potável”, destaca Luana Pretto.

Vital, a água dá sinais que está, gradativamente, diminuindo em algumas localidades, como relatado em um estudo conduzido pelo Inpe (Instituto Nacional de Pesquisa Espacial). Divulgado em 2023, pela primeira vez na história foi identificada como árida uma região no Brasil, no norte da Bahia, por conta de suas características, como o baixo índice de precipitação.

Ainda que o processo de degradação dos cursos hídricos seja gradual, especialistas defendem que o cuidado com o meio ambientes, com as nascentes e com os rios, lagos e oceanos, deve ser responsabilidade de todos os cidadãos e do poder público.

Da mesma forma que a falta de água castiga o corpo humano, ela também provoca sérios danos ao planeta, deixando populações inteiras em risco.

Um dos reflexos mais graves do desabastecimento são as guerras hídricas, ocasionadas por disputas geopolíticas resultantes da disponibilidade e distribuição do recurso. Principalmente nos locais em que a água é historicamente escassa, houve conflitos, como na Turquia, no Iraque e na fronteira do México com os Estados Unidos.

Exemplos trágicos não faltam para mostrar a importância do cuidado com patrimônio hídrico não apenas na data comemorativa, mas continuamente.(Com informações da Agência Brasil)