ONG SaferNet registrou, em 2016, quase 60 mil denúncias referentes a racismo, homofobia e intolerância religiosa, entre outros tipos de discriminação
ONG SaferNet registrou, em 2016, quase 60 mil denúncias referentes a racismo, homofobia e intolerância religiosa, entre outros tipos de discriminação | Foto: Shutterstock



No último dia 12 de julho, quando começou a circular a notícia sobre a condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva por corrupção e lavagem de dinheiro no caso do triplex no Guarujá, as redes sociais entraram em polvorosa. Comentários contra e a favor de Lula surgiram carregados de xingamentos, provocações e piadas de mau gosto. O episódio só reforça o que a internet tem evidenciado há tempos. Independentemente de orientação política e posicionamento ideológico, qualquer assunto polêmico é motivo para disseminar o ódio e a intolerância, inflando os ânimos e acirrando os debates nos quais o principal argumento é a agressão às opiniões contrárias.

A ONG SaferNet, criada para defender os direitos humanos na internet, registrou, em 2016, quase 60 mil denúncias referentes a racismo, homofobia, xenofobia, neonazismo, intolerância religiosa e apologia e incitação a crimes contra a vida. No Brasil, em todo o ano passado, foram denunciadas à ONG 1.048 páginas virtuais com conteúdos preconceituosos e discriminatórios.

O grande problema é que muitas vezes o discurso raivoso vem de figuras públicas e formadoras de opinião, como lideranças políticas, ganhando uma dimensão muito maior e que pode influenciar negativamente e contaminar uma grande parcela da sociedade, incitando a propagação do ódio e incendiando ainda mais os debates.
Professora e coordenadora do Laboratório de Estudos do Discurso da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), Vanice Sargentini afirma que a intolerância que se exibe nos discursos polarizados deixa ver suas raízes na desigualdade social, que é um reflexo da história do País. "Nisso estão envolvidas as relações de poder, de tolerância e até mesmo de cordialidade", analisa.

Como exemplo, Sargentini cita o processo de impeachment da então presidente Dilma Rousseff, em 2016, que desencadeou a propagação de uma série de expressões e imagens misóginas, demonstrando uma "forte luta pelo poder". "A tolerância é vigente enquanto o grupo que tolera tem a garantia do poder; ao sentir-se ameaçado, esse grupo irá passar ao discurso de ódio e intolerância."

O teor dos discursos de ódio, destaca a professora, revela os embates pelas ideias e, por extensão, a luta pelo poder. "As redes sociais amplificaram isso, ao facilitarem as formas de distribuição", diz ela, ressaltando, no entanto, que é preciso ter cuidado para não atribuir aos recursos tecnológicos a razão exclusiva de uma transformação profunda que se passa no discurso político. "Sem dúvida, os recursos tecnológicos hoje são inovadores e capazes de ampliar enormemente essa distribuição, mas essa estratégia não nasce no Facebook."

A professora avalia que em tempos em que a sociedade passa por declínios, as palavras refletem aquilo pelo que se luta. "Na iminência de se ver abalada a manutenção do poder, emerge a luta e com ela os discursos de embate, os discursos de ódio, que são muitas vezes empregados por aqueles que se subjetivam no poder, sem nem mesmo fazer parte dele."

"Para se debater de forma civilizada é indispensável ouvir o diferente", alerta o professor André Fonseca
"Para se debater de forma civilizada é indispensável ouvir o diferente", alerta o professor André Fonseca | Foto: Gustavo Carneiro



As próprias ferramentas disponibilizadas pelo Facebook, por exemplo, possibilitam a emergência de discursos mais agressivos. Professor e pesquisador do Departamento de Comunicação do Ceca (Centro de Educação, Comunicação e Artes) da (UEL) Universidade Estadual de Londrina, André Azevedo da Fonseca acredita que parte desse fenômeno se deve ao que alguns autores chamam de "bolha nas redes sociais". "Os próprios algorítimos das redes sociais em geral tendem a fazer com que as pessoas se fechem em referências que confirmem as suas próprias convicções, então elas acabam sendo conduzidas a uma bolha onde você curte aquilo que você já gosta e recebe só informação que você já gosta. Aí você começa a perder a oportunidade de se deparar com informações que contrariem o que você pensa, que contrariem os seus valores e quando as pessoas se fecham muito nessas bolhas a tendência mesmo é criar comunidades de ódio."

No contexto político, analisa Fonseca, a imersão nessa bolha prejudica o debate porque inviabiliza o diálogo e o contato com opiniões divergentes. "Para se debater de forma civilizada é indispensável ouvir o diferente para que a gente possa testar as nossas próprias hipóteses, para que a gente possa verificar qual parte do nosso próprio raciocínio tem falhas, então em uma democracia é fundamental que as diferenças apareçam e a gente possa discuti-las com naturalidade", avalia o pesquisador. "Quando a política começa a ser corroída com esse tipo de combate permanente, desqualificando 100% das qualidades do outro, isso prejudica a democracia por conta desse estado de espírito em que cada um fica mais preocupado em defender os seus próprios valores do que em aprender com as diferenças."

Quando políticos fomentam esse tipo de discurso, afirma Fonseca, as discussões esquentam ainda mais e levam ainda mais tensão a um campo que já está minado. "A gente percebe que na política o debate tem sido substituído pelo bullying, pelo achincalhamento. Imagina como isso é contraproducente porque quem é humilhado, mesmo se está errado, jamais vai mudar sua opinião porque vai se sentir ainda mais humilhado. Então, vai querer retrucar com a mesma moeda. É um discurso de ódio que além de não ser efetivo em termos de transformação política, só envenena mais o debate", avalia.

Discursos de ódio não são novidade
Manifestações de ódio contra posicionamentos políticos e ideológicos ganharam maior visibilidade com a popularização das redes sociais, mas não são propriamente uma novidade. Professora e coordenadora do Laboratório de Estudos do Discurso da UFSCar (Universidade Federal de São Carlos), Vanice Sargentini lembra do Caso dos Catorze, registrado em Paris no século 18. Em 1749 um espião da polícia teve acesso a um pedaço de papel que desencadeou uma sequência de prisões. "Eram poemas e melodias que faziam críticas ao rei. Inicialmente supunha-se ser um único poema, depois se viu que havia pelo menos seis. O autor também não era um único, um contava para o outro, que decorava e acrescentava algo e passava adiante. Enfim, algo que se assemelha a uma forte rede social", conta Sargentini.

Professor e pesquisador do Departamento de Comunicação da UEL, André Azevedo da Fonseca reforça que essa não é uma prática nova, sendo observada com frequência em todo o século 20. "Nos anos 1940 os adversários criavam panfletos para atribuir ao inimigo uma conotação diabólica, demoníaca, monstruosa, manipulando símbolos muito pejorativos para poder estabelecer combates políticos, em cartazes, em jornais, no mundo inteiro", destaca. "Hoje, nas redes sociais, esse fenômeno não é novo, mas tem sido amplificado por conta da própria penetração onipresente das redes sociais nas nossas vidas e a gente está o tempo todo conectado e isso acaba transparecendo de forma mais intensa", ressalta o professor.
"Andy Warhol dizia, nos anos 1960, que graças às mídias, todos nós seríamos famosos por 15 minutos. Hoje, a gente poderia pensar que com as redes sociais, todos nós seremos odiados por 15 minutos, sofrendo um bullying virtual", compara. (S.S.)

Pesquisador defende educação para as redes

A lógica da substituição do debate pela desqualificação do outro, a tentativa de criar uma representação extremamente pejorativa do adversário em vez de observar qual a sua linha de pensamento, afirma o professor e pesquisador André Azevedo da Fonseca, talvez seja um "beco sem saída", mas ele acredita que investir na educação básica para as redes poderia trazer a esperança de uma transformação de atitude dos internautas. "É preciso fazer com que as pessoas percebam que toda notícia é ideológica. Isso é um aprendizado importante porque faz com que todos consumam as notícias no mínimo com aquele espírito crítico de saber que aquilo pode ter um sentido, pode ter um objetivo que não é neutro. Isso já é uma educação que me parece importante."

A educação para as redes, defende Fonseca, poderia contribuir para o desenvolvimento de um senso crítico. "Para mim a educação precede inclusive a discussão política. Eu não vejo uma possibilidade de resolver esses debates políticos sem fazer uma profunda reflexão no campo da educação."
Parte dos movimentos que tentam restringir a liberdade de discussão sobre temas políticos em escolas, afirma o pesquisador, acaba se transformando em ferramenta para acirrar a ignorância nas redes sociais.

Para Fonseca, caberia ao ambiente escolar o papel de educar para a internet, mas para isso seriam necessárias mudanças na forma como os próprios educadores enxergam a tecnologia. "Eu vejo que as escolas estão ainda no século 20 em relação à tecnologia. Elas entendem tecnologias como um instrumento que você vai empregar como um usuário em vez de entender que a tecnologia deveria ser compreendida como uma linguagem que você se apropria para criar novas possibilidades." (S.S.)