Quantas infâncias cabem em Londrina? Do alto de um prédio com vista para toda a cidade até as margens do rio Tibagi, meninos e meninas vivenciam de jeitos diferentes os primeiros anos da vida em terra vermelha. São muitas as paisagens e os limites geográficos para o ir e vir de todo dia, mas não muda, entre eles, o gosto pelas brincadeiras, as referências aos cuidados dos pais, os momentos na escola e a alegria de ter amigos.

Enquanto Maria Eduarda brinca no "areão" do rio Tibagi com a égua Palomina, Manuela divide os momentos de diversão no playground do prédio localizado em um dos bairros mais valorizados pelo mercado imobiliário em Londrina. No Vista Bela, considerado um dos maiores complexos de residências populares do programa Minha Casa, Minha Vida, Kaetllyn desbrava as ruas do bairro com patins que esperou muito tempo para ganhar e sempre encontra refúgio na biblioteca solidária de um projeto social. No Jardim Honda, na região dos Cinco Conjuntos, Alice transforma a própria casa em um mundo de fantasia habitado pelos brinquedos e sonha ter um zoológico na garagem. No Centro de Londrina, Pedro Arthur e João Ricardo ultrapassam os limites dos carros, prédios, trabalhadores e as mazelas da vida urbana quando deixam o videogame para jogar futsal na quadra do Bosque.

Em celebração à infância e a todo o simbolismo desta fase da vida em tempos de Natal, a FOLHA conta nesta reportagem a história de seis crianças que vivem nestas várias Londrinas. Expostas a diferentes realidades e oportunidades, elas mostram que os fatores que definem estilos de vida e as expectativas em relação ao futuro são externos e dependem muito mais dos adultos que delas próprias. A alegria, os sonhos, as risadas e as fantasias tão próprias dos primeiros anos de vida, entretanto, se repetem mesmo quando mudam os cenários onde se realizam.

O psicólogo clínico especializado em infância e adolescência Fernando Zanluchi, que também é mestre em educação e professor universitário, destaca que a infância é um período de dependência e que, nesta fase da vida, as condições financeiras da família são menos importantes que as condições afetivas. "O que mais importa é o amor dispensado às crianças sob forma de cuidado, o que requer tempo, dedicação e envolvimento", afirma.

Segundo ele, o que define a qualidade da infância não é a qualidade dos bens materiais disponíveis. "Independentemente de a criança morar num prédio, numa casa ou na beira de um rio, os pais ou responsáveis precisam cuidar da criança e de sua infância, protegendo-a de perigos reais e virtuais", destaca, lembrando que ambos podem causar danos físicos e emocionais.

"A principal ocupação da infância é o brincar, que vem do latim "vinculum", de vínculo. É preciso ter vínculo com os colegas, com a família e com a sociedade em geral, pois a criança escolhe os temas de suas brincadeiras baseada na realidade que a cerca, micro e macro social. Não importa onde a criança viva, ela deve ter a oportunidade de brincar, que consiste em explorar o mundo, aprender de maneira natural e ser feliz", aconselha.

Alice acompanha o pai em todos os passeios e seu lugar preferido são as lojas de brinquedo
Alice acompanha o pai em todos os passeios e seu lugar preferido são as lojas de brinquedo | Foto: Anderson Coelho



Alice na casa das maravilhas
Em um primeiro olhar, a casa de Alice Martins Ortega, 9, é uma casa comum localizada no jardim Honda, na zona norte de Londrina. Tem sala, cozinha, três quartos e garagem na frente, como muitas outras residências do bairro. Quando a menina conta sobre a rotina dentro dela, porém, o local se transforma. Sonhadora, essa estudante do quarto ano de uma escola municipal enriquece todos os ambientes ao descrevê-los. Ela mora no local com os pais, que trabalham na área de vendas, e a irmã do meio, uma adolescente de 15 anos. A irmã mais velha, de 26, já mora sozinha, fato que Alice relata com grande admiração. "Eu já dormi no apartamento dela", comemora.

Ao contar sobre a própria casa, a sacada reservada para brincadeiras é descrita como uma "enorme sala de brinquedos". A garagem, ocupada pelo carro, faz parte dos planos de ter um zoológico. "O cavalo vai ficar lá", conta a menina, que ama os animais e teve várias cachorras "no tempo que eu ainda não existia, só minhas irmãs. Por isso que não as conheci."

A estante de livros da irmã do meio é apontada como um lugar mágico, onde ela não tem autorização para mexer, mas ganhou um cantinho para guardar as próprias obras. "Meu livro preferido é ‘Alice no País das Maravilhas’, porque ela tem meu nome." Vem do quarto da irmã, também, outro objeto de desejo, um vestido com tecidos transparentes que Alice não vê a hora de herdar. "Fico me imaginando grandona dentro dele. Adoro quando as roupas da minha irm㠑passam’ para mim."

Quando não está na escola, a garota se reveza entre ficar no trabalho da mãe e permanecer sob os cuidados do pai. "Às vezes fico sozinha, aí minha mãe telefona toda hora." Os fins de semana são reservados às atividades da igreja Batista, que ela frequenta e onde recentemente foi batizada, o que considerou uma grande conquista. "Posso comer a ceia, que é de pão e vinho. Mas na verdade é suco de uva", diverte-se.

A casa de Alice não tem quintal, mas isso não a impede de aprontar correrias com os primos e amigos. A sonhadora menina, que acompanha o pai em todos os passeios, do Estádio do Café ao local preferido, as lojas de brinquedo. "Claro que não posso comprar sempre, mas gosto de ver. Inclusive tem uma boneca que estou pedindo faz tempo e ainda não ganhei, a Baby Alive."

Alice conta que não tem qualquer dificuldade para fazer amigos, pois é muito gentil. "Todo mundo fala que meu sorriso é lindo", orgulha-se. Medos, ela tem poucos e o topo da lista é ocupado pelos ladrões e pelas baratas. "Meu pai acha que tenho medo de dormir no escuro, mas não é nada disso. Eu gosto de dormir abraçada". (C.A.)

Ver vídeos está entre as preferências de Manuela, mas ela também gosta de brincar com amigos na área de lazer do prédio onde reside
Ver vídeos está entre as preferências de Manuela, mas ela também gosta de brincar com amigos na área de lazer do prédio onde reside | Foto: Gustavo Carneiro



Manuela no playground
Do alto do prédio onde mora na região da Gleba Palhano, Manuela Futagami, 11, consegue ver toda a cidade. A janela que mais chama atenção da garota, porém, é a tela do celular que a transporta para o mundo dos youtubers. "Gosto de ficar no meu quarto assistindo vídeos", conta ela, que estuda em uma escola particular de Londrina e treina tênis de mesa. Manuela é filha de uma empresária e de um advogado e mora no edifício com os pais e o irmão de 15 anos.

O tempo livre é gasto em casa, onde além de acompanhar as peripécias do simpático youtuber Luba, brinca com os amigos na área de lazer do prédio. "Sou um pouco preguiçosa, não gosto de correr... Mas brincamos bastante de ‘polícia e ladrão’ ou de bola. Aí eu fico na defesa", conta Manuela, que passa o dia todo na escola, onde inclusive costuma almoçar. "Faço aulas nos laboratórios de física e química e curso de empreendedorismo social. São muitas atividades; às vezes cansa ficar tanto tempo ouvindo uma pessoa falar. A escola podia ter mais tempo de intervalo", reclama.

Depois do almoço, ela e os amigos aproveitam o tempo livre para jogar futebol americano, cujas regras eles aprenderam na própria escola. A matéria preferida é geografia e o gosto pela disciplina foi despertado por um professor bacana. "Se o professor é legal, é mais fácil gostar da aula", simplifica. Com tantas ocupações, não sobra muito tempo para o ócio, mas a garota tem um lugar preferido para passear em Londrina: o shopping Catuaí, onde costuma ir com frequência.

Questionada sobre um lugar que ela gostaria de conhecer, responde sem titubear: o Planetário da UEL (Universidade Estadual de Londrina), localizado no centro da cidade. "Uma vez a escola planejou este passeio, mas não deu certo. Desde então tenho muita vontade de ir até lá. Meu irmão disse que vai me levar quando tiver 18 anos", resigna-se.

No futuro, ela planeja ser médica, profissão que chamou a atenção por causa de atrações televisivas sobre o assunto. "Assisto vários programas e acho muito legal, por isso escolhi", conta Manuela, que não tem muitos medos. "Só tenho medo de aranhas, porque elas são feias". (C.A.)

Moradores do 13º andar de um edifício no centro, irmãos gostam de passear em shoppings, no Calçadão, na feira livre, e de brincar no Bosque e na Concha
Moradores do 13º andar de um edifício no centro, irmãos gostam de passear em shoppings, no Calçadão, na feira livre, e de brincar no Bosque e na Concha | Foto: Ricardo Chicarelli



João Ricardo e Pedro Arthur vivem a cidade do alto
Para qual time você torce? Em resposta à pergunta da repórter, Pedro Arthur Fabo Borges, 5, afirma prontamente: "Torço para o time sem colete". O time em questão é o da turma com quem ele joga futebol duas vezes por semana no Bosque Municipal, uma das únicas áreas verdes onde – com um pouco de boa vontade – as crianças que moram na área central ainda podem brincar. Junto com o irmão João Ricardo Fabo Borges, 10, ele aproveita as aulas oferecidas por um projeto social para praticar esportes a poucos metros de casa. Após interferência da mãe, Pedro lembra que também torce para o Tubarão, o time de Londrina que, por enquanto, só conhece pela televisão. O futebol dos clubes não parece fazer parte da realidade dos meninos. "Falo para o meu pai que torço para o Corinthians e para o meu avô que torço para o Santos. Mas na verdade, não torço para ninguém", completa João.

Os dois garotos moram com os pais, uma professora e um bancário, no 13º andar de um edifício exatamente no Centro de Londrina, desde que nasceram. A zona rural, com árvores, bichos e os sons do campo, fazem parte das férias, quando visitam uma fazenda da região. "Gosto muito da minha casa porque conseguimos ver todos os enfeites de Natal. A Catedral este ano ficou linda", resume João, que gosta também dos eventos infantis que ocupam a Concha Acústica. "Tem música, palhaço... Minha mãe leva a gente e é sempre divertido", diz.

A cidade vista de cima também ajuda a definir um dos passeios preferidos dos irmãos. "A gente gosta de ir ao ‘shopping redondo’", conta João, referindo-se ao Boulevard do jeito que ele o observa do 13º andar. Pedro lembra que eles podem ir a pé ao shopping Royal e enumera os lugares por onde passa no cotidiano: o Calçadão, o carrinho de churros da rua Souza Naves e o passeio à feira aos domingos, "às vezes para comer pastel e outras vezes só para comprar frutas". "Vamos no Calçadão comprar jogos de videogame, mas meu lugar preferido é o Camelódromo", acrescenta João, que gosta mesmo é de brincar de Lego no quarto, onde constrói missões embaixo da cama.

A mãe dos garotos é professora em uma escola municipal no conjunto Milton Gavetti, onde os dois também estudam. Por isso, a maioria dos amigos mora longe, mas isso não os incomoda. "A gente brinca bastante na escola, é legal", contam. Os sonhos dos meninos, como o da maioria das crianças desta geração, tem a ver com o mundo visto através de vídeos no Youtube. "Quero conhecer os Estados Unidos e todos os lugares que os youtubers mostram, como uma loja gigante de doces chineses", conta João.

Já o irmão Pedro, apesar de planejar muitas coisas relacionadas aos vídeos da internet, diz que seu maior sonho é andar de avião sobre a asa da aeronave. "Tem que ser na asa porque nesse dia vou pular de paraquedas", resume.

Kaetllyn mora com a mãe e a tia e, além de brincar com os amigos, também gosta de ler na Biblioteca Solidária, projeto desenvolvido no bairro
Kaetllyn mora com a mãe e a tia e, além de brincar com os amigos, também gosta de ler na Biblioteca Solidária, projeto desenvolvido no bairro | Foto: Anderson Coelho



Kaetllyn desbrava o Vista Bela
No dia em que a reportagem da FOLHA realizou a entrevista com Kaetllyn Batista, 11, ela estava exultante. Moradora do residencial Vista Bela, um dos maiores complexos habitacionais brasileiros do programa Minha Casa, Minha Vida, nos limites da Zona Norte de Londrina, a garota tinha acabado de ganhar da mãe um par de patins do tipo "roller". "Eu queria muito e agora ela conseguiu comprar", comemora a garota, que tinha passado uma manhã muito especial. "Eu e minha mãe fomos ao ‘centro’, compramos o ‘roller’ e comemos lanche. A gente só vai ao centro quando ela recebe salário. Aí, de vez em quando, ela compra esmalte e coisas de cabelo para mim."

A vaidosa Kaetllyn – que ama as cores rosa e roxo - mora em um dos milhares de apartamentos do Vista Bela com a mãe - que trabalha como auxiliar de produção em uma indústria - e a tia, que cuida dela durante o tempo que a mãe está fora. "Ela sai às seis da manhã e volta de noite", conta. O ano de 2017 não foi fácil para a família. A mãe de Kaetllyn foi diagnosticada com câncer de mama, passou por cirurgia e todo o tratamento e agora se recupera da doença. "Foi muito difícil quando minha mãe me contou. Fiquei bem assustada, mas ela me lembrou que eu não estava sozinha, eu tenho minha tia. Depois fiquei muito orgulhosa, porque minha mãe foi corajosa", emociona-se.

Apesar das dificuldades, o próximo ano será de mudanças boas. Depois de passar toda a vida escolar percorrendo um longo caminho de ônibus para chegar à escola, ela foi matriculada na nova escola do Vista Bela. "Vai ser legal porque dá para ir a pé", planeja ela, que toma café da manhã e almoça todos os dias na escola. "A janta é em casa, sempre tem arroz, feijão e batata frita, mas minha comida preferida é lasanha", avisa.

Kaetllyn gosta muito do bairro onde vive por ser o lugar que abriga a própria casa, o projeto Biblioteca Solidária – que ela frequenta quase diariamente – e a casa da melhor amiga Sara. "Tem muitas coisas que poderiam melhorar, como bueiros entupidos e a poluição nas ruas. Mas é um lugar bom, fico triste quando as pessoas pensam que aqui é uma favela", relata.

Maria Eduarda frequenta a escola municipal do distrito: é preciso acordar às 5 horas da manhã para chegar a tempo
Maria Eduarda frequenta a escola municipal do distrito: é preciso acordar às 5 horas da manhã para chegar a tempo | Foto: Saulo Ohara



Maria Eduarda, a ‘dona’ do Tibagi
Na casa de Maria Eduarda de Souza Vilarta, 9, nunca falta peixe fresco à mesa ou frutas de época produzidas sem agrotóxicos. Os produtos, porém, não são comprados no supermercado ou em estabelecimentos gourmet que vendem alimentos diferenciados a preço de ouro. A estudante da escola municipal do distrito de Lerroville mora às margens do rio Tibagi, no ponto mais remoto da localidade rural. Os pais, que se dividem entre a pesca, a colheita da laranja e a lida com o gado do sítio onde vivem para sustentar Maria Eduarda e o irmão de 17 anos, quase não fazem uso do dinheiro para garantir a subsistência de todos. "Minha comida preferida é pudim, mas minha mãe não faz porque nossa vaca é velha e não dá mais leite. A gente come muito peixe e as frutas do quintal."

O rio Tibagi está no centro da vida da menina. É de lá que vem o principal alimento da família e é lá que ela gosta de brincar de vôlei no "areão" quando o rio está baixo. É nas águas que Maria Eduarda se refresca nos dias quentes e são elas, também, a causa de um grande medo. "Quando veio a enchente, tivemos que ficar em uma barraca. Meu maior medo é ficar sem minha casa", diz a garota, para depois completar: "Também tenho muito medo de cobra, porque de vez em quando encontramos algumas perto de casa".

A casa de Maria Eduarda poderia até ser um lugar de sonhos para as crianças da zona urbana. Não faltam árvores para subir ou lugares para andar de bicicleta. "Quando estou com fome, numa época como agora, pego uma vasilha e encho de jabuticaba. É muito bom", garante, enumerando as outras opções de lanche da tarde: caju, gabiroba, laranja, seriguela, lichia, pitanga, abacate e manga.

A fiel companheira de aventuras é a égua Palomina, que ela cavalga para acompanhar o irmão, um especialista em assuntos de rodeio. O sonho de Maria Eduarda, aliás, é viajar com ele para os Estados Unidos para participar de provas da modalidade. "Eu quero mesmo ser cantora sertaneja, mas se não der certo, vou ser campeã em provas de tambor", planeja a destemida menina, que só ganha brinquedos uma vez por ano, quando a escola recebe a visita do Papai Noel dos Correios. "Esse ano pedi um violão", conta.

Para chegar à escola, Maria Eduarda acorda às 5 horas da manhã. Vai com o irmão até a porteira da propriedade onde uma kombi passa para levá-la até o ponto do ônibus escolar. "Chego na escola às 7h30 e aí vou comer alguma coisa. Em casa só tomo café preto." Antes de retornar para casa pelo mesmo trajeto, ela almoça na instituição de ensino. "Mas demora tanto para chegar que em casa eu almoço de novo." Em casa, aliás, antes de brincar no enorme quintal, ela precisa realizar tarefas domésticas para ajudar a mãe. "Todo dia faço alguma coisa. Lavo banheiro, lavo louça ou ajudo minha mãe a passar pano. Só depois posso sair."

Ela gosta muito de morar no sítio, mas reclama que há poucas crianças para brincar. "Só tenho companhia quando meus primos vêm visitar. Também tenho uma sobrinha de 9 anos, filha da minha irmã, mas elas não moram muito perto." relata. As duas irmãs mais velhas não vivem mais com a família, mas Maria Eduarda já planeja o dia em que vai morar próxima de uma delas. "Vai ser em Tamarana, mas vai ser legal".