Filho de posseiro, Vanderlei Ângelo ouvia histórias da guerra desde criança: "Era tiro pra todo lado"
Filho de posseiro, Vanderlei Ângelo ouvia histórias da guerra desde criança: "Era tiro pra todo lado" | Foto: Fotos: Ricardo Chicarelli


A ideia de viver uma vida tranquila e chegar ao 100 anos nunca esteve nos planos do polivalente João Saldanha. Se estivesse vivo mesmo depois de participar de confrontos armados, viver na clandestinidade sob nomes falsos e ser preso inúmeras vezes, estaria certamente a aprontar mais alguma nesta segunda-feira (3), data de comemoração de seu centenário. Mas o algoz maior de João Sem Medo – apelido dado por Nelson Rodrigues – foi outro. O consumo excessivo de cigarros o impediu de acrescentar mais essa façanha ao impressionante currículo. O gaúcho de Alegrete morreu vítima de enfisema pulmonar, em Roma, aos 73 anos, durante a cobertura da Copa do Mundo de 1990.

Consagrado como cronista esportivo e lembrado como o técnico que montou a seleção brasileira que sagrou-se campeã mundial no México, em 1970, Saldanha transitou por várias áreas, sempre a defender seus ideais. Segundo o biógrafo João Máximo, Saldanha foi "contrabandista" de armas aos seis anos, líder estudantil aos 20, dono de cartório aos 33 e membro do PCB (Partido Comunista Brasileiro) a vida toda. Foi jogador e técnico de futebol, campeão de basquete, jornalista, comentarista de rádio e televisão, analista de escola de samba, escritor e autor de enciclopédias. Também fez participação no cinema e foi candidato a vice-prefeito do Rio de Janeiro.

A militância comunista lhe colocou no epicentro de um dos mais violentos conflitos agrários ocorridos no País no século 20, a chamada Guerra de Porecatu (1948-1951). A partir de 1942, o interventor do Paraná, Manoel Ribas, incentivou a migração para o Norte do Estado, região ainda coberta pela Mata Atlântica. Atraídos pelas facilidades de pagamento, trabalhadores rurais, principalmente paulistas, mineiros e nordestinos, aportaram na região próxima à divisa com São Paulo, em uma área que compreende atualmente os municípios de Porecatu, Centenário do Sul, Guaraci, Jaguapitã, Florestópolis e Miraselva.

Com o fim do Estado Novo, em 1945, Manoel Ribas deixou o governo sem regularizar as terras ocupadas pelos posseiros. Dois anos depois, o governo de Moysés Lupion descumpriu o acordo e passou a entregar as terras sem títulos para fazendeiros com quem mantinha relações. Os fazendeiros contrataram jagunços para expulsar cerca de 1.300 famílias das terras em questão. O que eles não esperavam é que houvesse reação. Acuados, os posseiros decidiram revidar. De forma desordenada, faziam emboscadas e ataques contra homens ligados à repressão.

Era na Vila Progresso, patrimônio entre Porecatu e Centenário do Sul, que os posseiros se reuniam para traçar, precariamente, as estratégias de guerrilha. Ao perceber a oportunidade de colocar em prática a ideologia que previa a violência revolucionária como linha de ação, o PCB ofereceu auxílio aos posseiros. Os trabalhadores rurais, que até então lutavam em desvantagem, passaram a contar com táticas de guerrilha e melhores armamentos. Um dos membros do partido era João Saldanha. De acordo com o jornalista Marcelo Oikawa, no livro "Porecatu: a guerrilha que os comunistas esqueceram" (Expressão Popular, 2011), Saldanha estava ligado ao segundo homem na hierarquia do PCB, logo abaixo do secretário-geral Luís Carlos Prestes.

Sob os cuidados da filha Maria, Inácia Leandro é uma das poucas moradoras que poderiam dar testemunho sobre a revolta, mas já não se lembra de nada
Sob os cuidados da filha Maria, Inácia Leandro é uma das poucas moradoras que poderiam dar testemunho sobre a revolta, mas já não se lembra de nada



Segundo Oikawa, Saldanha foi escolhido para a função porque conhecia o Norte do Paraná. Ele esteve em Guaraci, no início da década de 1940, para vistoriar uma propriedade de seu pai. Na infância, Saldanha havia morado em Curitiba, onde estudou nos anos primários com o futuro presidente da República, o mato-grossense Jânio Quadros. Durante a revolta, tinha a missão de fazer a ligação do partido em todo o Norte do Paraná, incluindo a zona em conflito. Em entrevista à FOLHA, em uma série de reportagens publicada em julho de 1985, Saldanha se esquivou de perguntas sobre seu papel na guerra e disse que veio à região "como qualquer cidadão" e seguiu "aventurando". Disse, no entanto, que depois ligou-se aos comunistas para ajudar na campanha de solidariedade aos resistentes de Porecatu.

Ao fazer uma análise da guerra, mais de 30 anos depois da pacificação, ele a definiu como "o único movimento de luta armada vitorioso no Brasil". Segundo dados do governo, foram reassentadas 380 famílias na região, em um total de 1.520 pessoas. Já em relação aos objetivos políticos, foi quase unanimidade no partido o sentimento de derrota. Saldanha atribuiu o "fiasco" a uma traição de uma liderança do PCB. De acordo com o relato à FOLHA, o militante Celso Mello teria delatado todos os integrantes do partido na região, o que teria acarretado na dispersão dos comunistas.

Cemitério abandonado atrás do campo de futebol da Vila Progresso conserva sepulturas de vítimas do conflito
Cemitério abandonado atrás do campo de futebol da Vila Progresso conserva sepulturas de vítimas do conflito



A reportagem traz ainda que, nesta época, Saldanha trabalhou por dois anos como jornalista na sucursal do semanário "Hoje" do PCB, na rua Rio Grande do Norte, em Londrina. Ele voltaria a Londrina décadas depois, como técnico de futebol.

Na matéria existem algumas inconsistências e dados que não batem com os registros históricos, claros indícios de seus tradicionais relatos altamente criativos. Entre as histórias que garantia serem verídicas, estava a participação na Grande Marcha com Mao Tsé-Tung, na China, e a cobertura jornalística do desembarque na Normandia, com o capitão britânico Bernard Montgomery, na 2ª Guerra Mundial. Sobre as histórias fantásticas, Nelson Rodrigues assinalou: "Os fatos divergem das versões do João Saldanha. Pior para os fatos, porque a versão dele é sempre muito melhor que o fato". Já Máximo o definiu como "um apaixonado pela verdade, caminhando em nuvens de fantasia".

Imagem ilustrativa da imagem 100 anos do destemido João Saldanha