São Paulo - A democracia está em xeque, acusou na semana passada o presidente Luiz Inácio Lula da Silva, ao irritar-se com apupos de pequenos grupos em Cuiabá e Campo Grande. ''Com a democracia não se brinca'', ameaçou Lula, ''porque o que vem depois dela é muito pior''. A reação não combina com o tom duríssimo com que, durante 24 anos, ele vergastou governos e personagens a quem fazia uma oposição implacável.
Sob o comando de Lula, o PT apresentou incontáveis pedidos de impeachment contra o então presidente Fernando Henrique Cardoso. Não há registro de que um chefe da oposição o tenha xingado, mas, na oposição, Lula chamou FHC de ''ladrão'' e ''corrupto''; José Sarney, de ''grileiro''; e Itamar Franco, de ''imbecil''. Numa das acusações a FHC, bradou: ''Se eles (FHC e seus aliados) tivessem uma escola para ensinar a governar, eu não deixaria meus filhos entrar (sic), porque o máximo que meu filho ia aprender era roubar, e não governar''.
Em dezembro de 1998, dois meses após a eleição que FHC venceu no primeiro turno, uma corrente trotskista do PT lançou o bordão ''Fora FHC''. O partido não a aprovou e, em abril, três meses após a posse, lançou o mote ''Basta de FHC'' para substituí-lo, mas o ''Fora FHC'' já ganhara dimensão nacional. Em maio de 1999, o hoje ministro da Justiça, Tarso Genro, escreveu um artigo defendendo o ''Fora FHC''.
Pedras e picareta - ''O PT de Lula sempre foi muito mais agressivo que a oposição de agora'', constata a cientista política Maria Celina d'Araújo, do CPDOC/FGV. No início de 1986, o PT organizou manifestações de protesto no campo. O então presidente José Sarney afirmou: ''Não podendo alcançar o poder pelo voto, o PT recorre à luta armada''. Lula respondeu muitos tons acima: ''Sarney não vai fazer reforma agrária coisa nenhuma porque ele é grileiro no Maranhão''. Em maio de 1985 militantes da CUT atacaram com pedras e uma picareta, no Rio, um ônibus que levava a comitiva de Sarney. O presidente ficou coberto de cacos de vidro.
Só nos primeiros seis meses de 1998, um ano eleitoral, o PT fez cinco representações pedindo o impeachment de FHC, ao contrário da atual oposição, que evitou chegar ao impeachment no escândalo do mensalão. No Congresso, o PT passou os oito anos de FHC cobrando CPIs para tudo. Em setembro de 2001, Lula denunciou que o acordo do governo FHC com o FMI incluía cláusulas secretas para privatizar o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal. Não houve registro de que o governo FHC pretendesse privatizar o BB e a CEF, mas o governo Lula já não vê pecados em privatizar: há alguns dias anunciou a privatização de algumas das principais rodovias brasileiras.
A eleição acabou - ''Diga a eles que a eleição acabou em outubro'', afirmou Lula, terça-feira passada, em Campo Grande (MS), mandando um recado às pessoas que o vaiaram. Em 8 de julho de 1999, o PT decidiu promover passeatas para pressionar a Câmara a iniciar um processo de impeachment contra FHC, explicou Lula à época, sem se dar conta de que a eleição acabara nove meses antes e ele tinha sido derrotado.
Na comemoração do 1º de Maio de 1997, em São Bernardo do Campo, no ABC Paulista, Lula acusou FHC de estar ''metido na maracutaia dos precatórios, do Sivam, do Proer e da compra de deputados para a reeleição''. Em seguida, a CUT-SP comandou massiva vaia a FHC, à qual Lula assistiu com um sorriso maroto, sem achar - como acha hoje - que vaias ao presidente podem ameaçar a democracia.
Lula foi muitas vezes vaiado por platéias de esquerda, mas nunca se incomodou. No Fórum Social Mundial, em 2003, ele qualificou a vaia como ''um gesto democrático''. No 8º Congresso da CUT, em junho de 2003, disse: ''Eu acho a vaia tão importante quanto o aplauso''. Na fábrica da Mercedes-Benz, em São Bernardo do Campo, em 2004, ele abandonou um discurso para dar explicações aos trabalhadores. Em novembro de 2004, na Conferência Nacional Terra e Água, foi vaiado por 9 mil sem-terra e não reclamou.