A fala do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) sobre a ação militar de Israel na Palestina serviu como combustível para a manifestação da oposição neste domingo (25) em São Paulo. Na semana em que o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) teve que comparecer na Polícia Federal para depor sobre a tentativa de golpe, a maior parte das atenções estiveram voltadas para a declaração de Lula, que levou o primeiro-ministro israelense, Benjamin Netanyahu, a dizer que o brasileiro “cruzou a linha vermelha” e declará-lo 'persona non grata.'

Apesar da pouca reação contrária fora do país (a União Europeia, por exemplo, declarou não ter visto antissemitismo na fala de Lula), na semana passada o tema pautou a extrema direita brasileira, que adotou a versão de Netanyahu. A oposição na Câmara protocolou um pedido de impeachment com 139 assinaturas, argumentando que Lula cometeu crime de responsabilidade por um ato de hostilidade contra outra nação. A abertura do processo depende do presidente da Câmara, Artur Lira (PL-AL).

Lula criticou ação de Israel e o corte de ajuda humanitária na Faixa de Gaza no dia 18, durante visita à Etiópia. O ponto mais polêmico foi quando ele comparou as mortes de palestinos ao Holocausto, o extermínio programado de 6 milhões de judeus durante a Segunda Guerra Mundial. Lula afirmou que uma ação militar como a que vem ocorrendo “existiu quando Hitler resolveu matar os judeus”, em referência ao ditador nazista.

GUERRA INTERNA

As redes sociais foram tomadas por opositores e apoiadores de Lula logo após a declaração e a guerra prosseguiu durante a semana. O deputado federal Filipe Barros (PL-PR) afirmou que a “baixeza moral e diplomática” é a “principal commodity” do presidente. “Sua fala contra Israel e o povo judeu envergonha o Brasil em escala global, mas também é mais um forte indício dos movimentos obscuros que rondam o Itamaraty”, escreveu o parlamentar.

Presidente do PT no Paraná, o deputado estadual Arilson Chiorato disse que a fala de Lula teve o mérito de chamar a atenção para o problema. “O governo de Netanyahu não está numa posição para dar lição de moral em ninguém, pois o mundo tem visto diariamente a punição coletiva impetrada sobre o povo palestino, com destruição da infraestrutura civil, através de bombardeios a escolas e hospitais, condenando a população civil a ficar sem água, comida, remédios, sem anestesia para procedimentos médicos”.

Para a cientista política Karolina Mattos Roeder, a defesa de Israel e temas relacionados à segurança pública e a pautas morais ajudam a aglutinar a extrema direita. “Israel não é qualquer tema, é uma questão que une a extrema direita. Esse grupo não se organiza de maneira tradicional, em torno de pautas econômicas e programas objetivos, atua de forma coordenada em situações como essa”, diz a professora universitária. “A extrema direita vai continuar buscando recortes de falas controversas para inflamar e agitar o eleitorado, pois isso reafirma a sua identidade antipetista, de direita, e alimenta a sua própria existência.

IMPEACHMENT E OPORTUNISMO

Apesar de se tratar de um processo político, há a necessidade de bases jurídicas para que admissibilidade de um pedido de impeachment, diz a advogada e doutora em Direito Constitucional Melina Fachin. “Pegaram na Lei do Impeachment um fundamento bastante amplo, de cometimento de hostilidade contra nação estrangeira. Do ponto de vista jurídico estrito, talvez o conceito esteja sendo um pouco elastecido para justificar esse pedido. A meu ver, há muito mais uma questão de conveniência e oportunismo político do que propriamente de preenchimento de critérios legais”.

Para Melina Fachin, um pedido de impedimento do presidente também poderia ser apresentado caso o Brasil não tomasse nenhuma atitude em relação ao que vem ocorrendo na Palestina. “Não podemos descartar o fato de que há massivas violações aos direitos humanos (em Gaza). O Brasil é signatário de vários tratados e compromissos internacionais. Do ponto de vista da Lei do Impeachment, se o Brasil não fizesse nada para defender os direitos humanos, poderíamos achar um fundamento para pedir o impeachment. Há uma maleabilidade que funcionaria em ambos os sentidos”.

Destruição da Faixa de Gaza repercute pelo mundo, Lula se manifestou claramente sobre o conflito e os ataques levantando a polêmica
Destruição da Faixa de Gaza repercute pelo mundo, Lula se manifestou claramente sobre o conflito e os ataques levantando a polêmica | Foto: Said Khatib/ AFP

'Foi doloroso e desrespeitoso', afirma representante da comunidade judaica no PR

A fala de Lula sobre Israel foi desrespeitosa por comparar a ação militar em Gaza ao extermínio planejado e em escala industrial de judeus na Segunda Guerra Mundial, avalia Fernando Brodeschi, diretor da Federação Israelita do Paraná. A operação teve início após os ataques do Hamas, em 7 de outubro do ano passado. O Hamas foi eleito para administrar a Faixa de Gaza em 2006 e desde outubro vem mantendo reféns israelenses.

“Não foi um deslize, foi proposital. Ele (Lula) evocou o Holocausto para gerar polêmica, gerar um desconforto. Citar Hitler foi o pior que ele poderia ter feito, é o grande algoz do povo judeu”, afirma Brodeschi. “Apesar dos vários momentos de perseguição aos judeus na história, na Babilônia, no Império Romano e na Inquisição na Península Ibérica, nunca houve alguém como Hitler. Foi doloroso e desrespeitoso”.

Para Brodeschi, não se tratou de uma ação isolada de Lula. Ele avalia que, desde outubro, o Brasil vem abandonando sua tradicional posição de neutralidade. “O Brasil tem claramente abraçado um dos lados da guerra. Fez o movimento de retirada de brasileiros da Faixa de Gaza, mas não fez nenhuma ação para retirar o brasileiro que é refém do Hamas. E outros membros do Partidos do Trabalhadores vêm expressando algumas manifestações que nos deixam preocupados. A pior foi do Genoíno (José Genoíno, ex-deputado e ex-presidente do PT), quando conclamou as pessoas a boicotarem estabelecimentos comerciais de judeus”.

O diretor da Federação Israelita do Paraná diz ainda que vê uma espécie de banalização do antissemitismo e do nazismo no país. “As falas do atual presidente respaldam os extremistas pró-Hamas e algumas falas e atitudes do ex-presidente Jair Bolsonaro incentivaram os extremistas pró-nazistas. Passamos por uma banalização na última década, qualquer pessoa aponta o dedo e chama a outra de nazista”. Em 2021, Bolsonaro chegou a receber no Palácio do Planalto uma deputada alemã neta de um ministro Adolf Hitler e líder de um partido e extrema direita, o Alternativa para a Alemanha.

Fernando Brodeschi diz não ver possibilidades de Lula ou o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, voltarem atrás neste momento, o que poderá levar a um acirramento das tensões na relação entre os dois países. “Israel está com um problema grande, o que menos precisa agora é alguém a 15 mil quilômetros de distância querendo botar lenha na fogueira. Tanto Lula quanto Netanyahu estão irredutíveis nas suas posturas e infelizmente acho difícil um dos dois dar o braço a torcer”.

'Líderes mundiais vão dizer o que ele teve coragem de falar', diz presidente da Federação Palestina

A declaração do presidente Lula sobre a situação na Faixa de Gaza reflete o sentimento internacional, à exceção de Israel e dos Estados Unidos, e será referendada por outros líderes, diz o presidente da Federação Árabe Palestina do Brasil (Fepal), Ualid Rabah. Para ele, desde os ataques do Hamas, em 7 de outubro, e da resposta militar israelense, há uma tentativa de transformar a questão palestina em uma luta política interna no Brasil, o que leva a extrema direita a apoiar qualquer ação de Israel.

“A esmagadora maioria dos países sabe que Israel está cometendo um genocídio. Lula expressou o que o mundo está dizendo com outras palavras, o pronunciamento mais duro da China na Corte Internacional de Justiça reflete essa fala. Os líderes mundiais vão começar a dizer publicamente o que o Lula teve coragem de dizer. Ele abriu uma porteira”, aposta Rabah. Na quinta-feira, a China argumentou na Corte Internacional de Justiça que os palestinos têm direito a usar a violência em nome de sua autodeterminação.

Ualid Rabah julga que, em nome de disputas políticas e eleitorais, a extrema direita brasileira optou por ignorar violações aos direitos humanos. “Há uma tentativa de tornar o genocídio na Palestina em uma questão de luta política interna, colocar uns contra os outros, como se fosse um debate eleitoral. A extrema direita, e não somente desde o dia 7 de outubro, escolheu estar com o genocídio permanente que dura 76 anos na Palestina”.

As acusações de antissemitismo seguem um método, acusa o presidente da Fepal. “Israel pode estar cometendo um genocídio, mas, se aquele que acusa for acusado de antissemitismo, a acusação de genocídio perde a lógica. A Europa resolveu não aceitar isso, até porque a visão do Lula não foi essa. Pelo contrário, ele disse que foi um crime horrível a perseguição e a morte de judeus na Europa, e que agora na Palestina está acontecendo a mesma coisa”.

Para Ualid Rabah, as práticas de Israel podem ser consideradas genocidas desde a criação do estado, em 1947. “Entre 1947 e 1951, 78% do território da Palestina foi tomado para se tornar Israel pela força, 88% dos palestinos foram expulsos ou mortos. Os palestinos são 20% dos refugiados no mundo, apesar de serem 0,17% da população mundial. Em Gaza, são 365 quilômetros quadrados e temos 1,9 milhão de pessoas entre mortos e deslocados, além de 40 mil mortos, 8 mil desaparecidos sob escombros e 70 mil feridos. Israel pretende ter maioria judaica na Palestina histórica, podemos estar diante da tentativa de eliminar até 500 mil pessoas na Faixa de Gaza”.