Dez anos depois do início da Lava Jato, a maior operação da história da Polícia Federal, o principal legado é no âmbito jurídico. E muito desse legado se deve a uma reação aos métodos utilizados pela operação, como as conduções coercitivas e condenações baseadas em delações premiadas, avaliam juristas. O movimento de reação se intensificou depois da revelação dos diálogos entre o ex-juiz Sergio Moro e integrantes da força-tarefa da Lava Jato do Ministério Público Federal (MPF), na série de reportagens que ficou conhecida como Vaza Jato.

Iniciada no ano seguinte às manifestações que se espalharam pelo país em 2013, a Lava Jato passou a ser vista como uma esperança no combate à corrupção e teve um total de 79 fases. Cerca de R$ 4,3 bilhões foram recuperados e devolvidos à Petrobras, além de R$ 111 milhões a partir de acordos de delação. A operação fez 163 prisões temporárias e 553 denúncias à Justiça, com 242 condenações de 155 pessoas, entre elas o então ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva, o ex-presidente da Câmara Eduardo Cunha e Marcelo Odebrecht, diretor da construtora Odebrecht.

Advogados e lideranças políticas passaram a denunciar o que seriam abusos e falta de imparcialidade por parte da força-tarefa do MPF e de Sergio Moro, titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, responsável pelos processos relativos à Petrobras. Para os críticos da Lava Jato, prisões prolongadas, conduções coercitivas e condenações baseadas em delações premiadas faziam parte de uma estratégia para atingir Lula e o PT.

Uma fato que teria mostrado a parcialidade de Sergio Moro ocorreu em outubro de 2018: uma semana antes do segundo turno das eleições para presidente, Moro tornou pública a delação do ex-ministro Antonio Palocci, apontada como falsa pela Polícia Federal e anulada posteriormente pelo Supremo Federal Tribunal (STF). Palocci teria revelado à PF que Lula sabia da corrupção da Petrobras e a divulgação da suposta delação atingiu a imagem do candidato do PT, à Presidência, Fernando Haddad. Jair Bolsonaro (PSL) venceu a eleição e Moro foi convidado para assumir o Ministério da Justiça.

Avanços

Para juristas ouvidos pela FOLHA, a Lava Jato deixou um legado positivo em termos legislativos – parte dele decorrente de uma reação à própria operação. “Acredito que existiram determinados abusos processuais, que hoje já não acontecem mais. Hoje os requisitos da preventiva são outros, tem a Lei de Abuso de Autoridade e outras garantias, mas não época não tinha todo esse mecanismo”, diz o advogado Carlos Alberto Farracha de Castro, doutor em Direito que chegou a defender um acusado na primeira fase da operação, em 2014

Para o advogado, a declaração da inconstitucionalidade das conduções coercitivas e as mudanças de entendimento em relação às colaborações premiadas estão entre os efeitos benéficos da operação. “O Supremo declarou a inconstitucionalidade da condução coercitiva e colocou limite na indústria da delação, houve a reforma do juiz das garantias. A Lava Jato custou muito para algumas pessoas, para acusados e advogados, mas mudou um pouco a forma de atuação na Justiça penal. Hoje o processo penal é mais democrático. Se alguém fosse absolvido no início da Lava Jato, poderiam dizer que o juiz é corrupto.”

Autor do livro “Corrupção e Administração Pública no Brasil”, o advogado e mestre em Direito do Estado Clóvis Alberto Bertolini aponta como principal legado da Lava Jato a Lei 13.303, de 2016, conhecida como Lei de Empresas Estatais. “Ela foi responsável por reformular todo o sistema de governança corporativa das empresas estatais, incluindo as sociedades de economia mistas e as empresas públicas. Essa lei porque limitou a atuação política de dirigentes de empresas estatais. Muito embora haja movimentos no atual governo de revê-la, há uma manutenção dos objetivos da lei de empresas estatais.”

Bertolini diz que também houve avanços na esfera privada. “Tivemos mudanças bastante significativas por parte das empresas, que se preocupam com problemas de compliance e governança corporativa. Hoje, quando vão se relacionar, as empresas buscam verificar o histórico das outras empresas, se têm questões negativas sob o ponto de vista da integridade e relações com lavagem de dinheiro. O próprio mercado atua com mais diligência para que os erros do passado não aconteçam.”

Introduzida em dezembro de 2019 no Código de Processo Penal (CPP), a figura do juiz de garantias é vista como outro efeito benéfico da Lava Jato. O projeto de lei aprovado em 2019 prevê que o juiz responsável pela fase da investigação não será o mesmo que proferirá a sentença. Em agosto de 2023, o STF estabeleceu um prazo de 12 meses para os tribunais implementarem o juiz de garantias.

Investigação teve início com prisão de doleiro londrinense

A Lava Jato começou no dia 17 de maro de 2014, quando uma operação da PF prendeu o doleiro londrinense Alberto Youssef, suspeito de lavar dinheiro ilegal por meio de um posto de lavagem de carros em Brasília. Youssef já havia sido condenado pelo então juiz Sergio Moro em um dos processos do caso Banestado, no início da década de 2000, mas foi solto depois de firmar um acordo de delação premiada.

Após as investigações decorrentes da operação em Brasília, Youssef foi apontado como operador de propinas na diretoria de Abastecimento da Petrobras, que era comandada por Paulo Roberto Costa, e os processos resultantes da investigação sobre o pagamento de propinas para diretores da companhia ficaram sob responsabilidade da 13ª Vara Federal de Curitiba, cujo titular era Sergio Moro. O Ministério Público Federal (MPF) criou uma força-tarefa de procuradores para se dedicar às investigações, grupo que só foi extinto em janeiro de 2021, pelo então procurador-geral da República Augusto Aras.

Três meses depois, em abril de 2021, o Supremo Tribunal Federal (STF) anulou as condenações de Lula, que recuperou seus direitos políticos. Sete ministros seguiram o voto do relator Edson Fachin, que declarou a incompetência da 13ª Vara Federal de Curitiba para julgar o ex-presidente. Fachin entendeu que não havia ligação entre os fatos apurados e a corrupção na Petrobras.

Revelações de diálogos entre Moro e integrantes da força-tarefa abalou imagem

A revelação de diálogos entre membros da força-tarefa da Lava Jato e o ex-juiz Sergio Moro, em 2019, abalou a imagem da operação nos meios jurídicos. Obtidas a partir do hackeamento de grupos no aplicativo Telegram, as gravações que foram publicadas por vários veículos, em uma série que ficou conhecida como Vaza Jato, mostrariam uma articulação entre a acusação (os membros da força-tarefa do Ministério Público Federal) e o Sergio Moro para atingir determinados objetivos.

Nos diálogos, Moro orienta o ex-procurador Deltan Dallagnol, então chefe da força-tarefa em Curitiba, a respeito de delações e da realização de operações da Polícia Federal. Em uma das conversas, Dallagnol teria dito a outros integrantes da força-tarefa que havia dúvidas sobre as provas que levariam à prisão de Lula em 2018 (a acusação era de que ex-presidente ganhou um triplex como forma de propina). Os procuradores ainda teriam ironizado as mortes da ex-primeira-dama Marisa Letícia, do neto de Lula, Arthur Araújo Lula da Silva, e do irmão do petista, Genival Inácio da Silva.

“Pelo que a gente vê na imprensa é de ficar perplexo”, diz o advogado Carlos Alberto Farracha de Castro em relação aos diálogos. “Vi ali que o advogado, em alguns casos, era um fantoche. A quem o advogado precisava recorrer para fazer justiça estava vinculado, segundo a Vaza Jato, a um triunvirato, formado por acusação, juiz e investigação.”

Segundo Farracha de Castro, muitos advogados apoiavam a operação antes da divulgação das conversas. “Na época da Lava Jato, falavam que os advogados atrapalhavam a Justiça. Eu mesmo tinha conhecidos que eram apoiadores da Lava Jato, mas que, quando sentiram de perto o que era o descumprimento do estado de direito, se revoltaram.”

O fato de os processos ficarem concentrados em Curitiba também passou a ser visto com ressalvas. “Que a operação gerou efeitos benéficos, quebrando a corrupção e recuperando dinheiro público, é inegável. Mas, nesse afã de acabar com a corrupção, descumpriram e não observaram algumas regras processuais do devido processo legal, do direito à defesa”, afirma Farracha de Castro. “Qualquer processo ia para a comarca de Curitiba. Curitiba é uma comarca como as de outras capitais, quem entendia um pouco do Direito sabia que aquilo estava errado. Acredito que a comoção popular causou uma certa apreensão nos tribunais, tanto que a maioria das decisões era mantida pelos tribunais superiores.”

O ex-procurador Deltan Dallagnol, chefe da força-tarefa da operação em Curitiba, nega qualquer irregularidade. Para ele, atualmente o STF vem tomando as medidas que acusou a Lava Jato de tomar. “Garantistas de ocasião, que procuravam alguma coisa para criticar a Lava Jato, fecham os olhos para o que o Supremo está fazendo hoje, julgando pessoas sem foro privilegiado, sem que tenha qualquer competência para julgar e condenar essas pessoas”, diz Dallagnol em relação aos acusados de participação nos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023.

Dallagnol nega que as prisões da Lava Jato tenham sido abusivas. “Hoje, vemos prisões alargadas. As prisões preventivas em Curitiba nunca passaram de 40 dias, que é o prazo legal. As prisões determinadas pelo Supremo estão durando cinco, seis meses. Acusavam a Lava Jato de prender pessoas para delatar, mas mais de 80% das pessoas que fizeram delação estavam soltas. O STF vem fazendo tudo aquilo que acusava a Lava Jato de fazer.”

Operação pode ter cortado 4,4 milhões de empregos e reduzido o PIB em 3,6%

Um estudo do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) indicou que a operação Lava Jato levou ao fechamento de 4,4 milhões de postos de trabalho entre 2014 e 2017. Um milhão de empregos teriam sido cortados na construção civil, em função de obras paralisadas e de empresas que declararam incapacidade financeira, o que teria afetado mais um milhão de pessoas que dependiam dessas obras. Outros 2,4 milhões de postos de trabalho teriam sido cortados como efeito da redução do consumo.

Segundo outro levantamento, das universidades Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), a Lava Jato reduziu o Produto Interno Bruto (PIB) do país em 3,6% no mesmo período e as maiores construtoras do país perderam receita entre 2015 e 2018. Em 2022, o Dieese e o Ineep (Instituto de Estudos Estratégicos de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) afirmou que o rombo deixado pela operação foi de aproximadamente R$ 153 bilhões, mais de 25 vezes o valor recuperado, e que outros US$ 853 milhões foram pagos pela Petrobras em multas aplicadas nos Estados Unidos.

Na época em que o estudo do Dieese e do Ineep foi divulgado, o ex-juiz Sergio Moro culpou a corrupção identificada na Petrobras como a responsável pelo fim dos postos de trabalho. “O governo do PT foi manchado pelos maiores escândalos de corrupção da história. A gestão desastrosa do PT quase quebrou a Petrobras e o país. O que prejudicou a economia e eliminou empregos foi a corrupção e não o combate a ela”, afirmou Moro.

Para o advogado e mestre em Direito do Estado Clóvis Alberto Bertolini, uma das falhas da Lava Jato foi não ter dosado a punição às empresas. “A Lava Jato teve pontos positivos, no sentido de ter uma atuação mais pró-ativa dos órgãos de controle e responsabilizar as empresas, mas os aspectos positivos não mascaram as questões negativas. A Lava Jato não soube dosar essa questão, atingindo o caixa das empresas e os empregos gerados por essas empresas.”

A atuação política posterior de Sergio Moro e Deltan Dallagnol, que foram eleitos senador e deputado federal, respectivamente, também afetaram o legado da operação, avalia Bertolini. “Algumas questões acabam prejudicando a própria Lava Jato, como o procurador do outdoor (o procurador Diogo Castor de Mattos, que confessou ter custeado um outdoor em homenagem à operação), e a participação política de alguns membros da Lava jato. Acho que isso trouxe prejuízos para o legado.”

Deputada federal e presidente nacional do PT, Gleisi Hoffmann destaca os supostos prejuízos e disse que a operação “por pouco não reinstaurou a ditadura no país”. “A Lava Jato custou ao país a destruição do estratégico setor de exportação de serviços, engenharia, óleo e gás, a condenação de 4 milhões de pessoas ao desemprego e incalculável prejuízo à economia do país”, afirma. “A herança política da Lava Jato foi a eleição de um presidente de extrema-direita em 2018, que por pouco não reinstaurou a ditadura no país. Sua herança institucional foi o descrédito nas instituições, especialmente do Ministério Público e do Judiciário, que hoje se esforçam para reconstruí-la.”