Imagem ilustrativa da imagem Vieram para ficar
| Foto: Nasa/Goes Project/AFP



O planeta testemunhou recentemente uma sequência de seis furacões devastadores: Harvey, Irma, Jose, Katia, Lee e Maria. Além deles terem surgido em intervalos mais curtos do que em anos anteriores, o que os difere dos registrados anteriormente é a intensidade mais forte com que atingiram a América Central e o Sul dos Estados Unidos. Um dos fatores para esse fenômeno está na temperatura do mar, pois quanto maior a evaporação produzida, mais umidade haverá para alimentar esses furacões.

No centro desse debate está o aquecimento global, causado por gases que provocam o efeito estufa, e que está aumentando ano a ano. A reportagem da FOLHA conversou com Andréa Souza Santos, que foi consultora na Secretaria Executiva do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas, tendo sido contratada pelo Pnuma-Brasil (Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente) para o desenvolvimento de atividades gerenciais e de consultoria técnica do projeto. Ela atua como consultora sênior na área de meio ambiente, políticas sobre mudança do clima (vulnerabilidades, impactos, adaptação e resiliência de cidades) e sustentabilidade.

Atualmente é pesquisadora na Coppe/UFRJ (Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia da Universidade Federal do Rio de Janeiro), secretária executiva do Painel Brasileiro de Mudanças Climáticas e gerente do Escritório de Projetos do Fundo Verde da UFRJ. Segundo ela, todos terão de se adaptar a essas mudanças climáticas, já que os gases produzidos pela humanidade desde a revolução industrial ficam acumulados na atmosfera por até 300 anos.

A curto prazo, a população mundial terá condições de ver a redução da temperatura do planeta ou terá de se adaptar às mudanças climáticas?
Na verdade, todos terão que aprender a conviver com elas. Essa mudança climática é advinda desde a revolução industrial e esses gases que a gente está produzindo perdurarão na atmosfera por cem a 300 anos. Com isso, a tendência de aquecimento continuará. O que a gente pode fazer é limitar agora para não ter mudança climática mais extrema no futuro. Para mitigar os efeitos dos gases que provocam o efeito estufa, precisamos mudar a matriz energética, optar pelo transporte de massa e ter uma indústria menos carbônica. Fora a mitigação, vamos ter de entrar com a adaptação a este novo cenário, realizando medidas ligadas à parte civil, de preparar as cidades com infraestrutura que dê suporte a esses eventos.

Pode dar um exemplo?
O deficit hídrico será mais constante e será preciso levar água para as populações que vivem nas áreas atingidas. Devem ser criadas áreas com temperaturas mais amenas que possam abrigar pessoas, já que crianças e idosos podem vir a óbito em temperaturas extremas. Onde houver altas precipitações, as cidades devem criar estruturas para se proteger de inundações ou de desabamentos. Também deverão ser criadas condições para que o sistema de transporte não seja impactado para que a cidade flua, mesmo nessas condições adversas.

Recentemente, o Ministério da Integração Nacional emitiu um relatório apontando que 23% dos municípios brasileiros estão em situação de emergência em função da falta ou do excesso de chuvas. Isso tem alguma relação com as mudanças climáticas?
Sim. Com a mudança climática, começamos a observar fenômenos de chuvas mais intensas. O volume de precipitação que estava previsto para determinada região para um mês acontece hoje em um ou dois dias, provocando esses eventos de inundação em algumas cidades e deslizamento de terra e destruição em outras. Por outro lado, existem cidades com deficit hídrico, passando por um longo período sem chuva. Foi o que aconteceu no Sudeste (entre 2014 e 2016) e agora acontece no Centro-Oeste, onde cidades estão há mais de 120 dias sem chuva. Fora o Nordeste, que tem a intensificação de extremos de seca por questões naturais. Por isso, muitos municípios pediram ajuda para solucionar esses problemas. O aquecimento global deixa o clima desregulado, desequilibrado.

Recentemente, foram registrados vários furacões no hemisfério norte em sequência, com alta intensidade e em intervalos mais curtos que em outros anos. O que provocou isso?
O aquecimento das águas dos oceanos serve como combustível para os furacões. Eles surgem ao longo do verão mais intenso, mas esses de categorias mais altas, que foram observados agora, estão relacionados às mudanças climáticas por conta do aquecimento dos mares. Foi uma sequência. Teve o Harvey, Irma, Jose, Katia, Lee e Maria. Com a mudança climática, é possível que haja mais eventos parecidos com esses ou até piores.

Não há meios de reduzir essa escalada do aquecimento global?
O Acordo de Paris teve como meta limitar o aumento da temperatura do planeta em 1,5ºC acima dos níveis pré-industriais, mas a tendência é que não consiga limitar em 2ºC por influência humana. Teremos pela frente mudanças climáticas mais intensas e a ocorrência de tempestades com intensidade maior e que atingirão regiões que são vulneráveis por questões de pobreza. O Haiti, por exemplo, já sofre com isso, além de estar em uma região que sofre com terremotos. Os Estados Unidos já são mais preparados pela condição econômica, mas com uma intensidade maior desses eventos as pessoas correm risco de morte. Geralmente acontecem inundações após um furacão. Nos Estados Unidos, poucos dias depois do furacão, a água pode ser escoada, mas em países e ilhas mais vulneráveis fica difícil entrar com medidas de recuperação e há mais demora para ter esse escoamento da água.

A saída dos Estados Unidos do Acordo de Paris piorou a situação?
É uma sinalização péssima para um país considerado o segundo maior emissor de gases poluentes do mundo. Isso é contraditório, já que eles são um país que lideram essa questão de construção de soluções ambientais e onde se observam grandes cientistas, grandes centros de pesquisas preparados tecnicamente. Basta ver a Nasa (Agência Espacial Norte-Americana). Muitos dos estudos que analisam a questão ambiental são produzidos lá e essa saída do acordo foi na contramão dessa luta contra as mudanças climáticas e desse potencial para deter o aquecimento do planeta, adotando um modelo baseado no carbono, no transporte poluente. O prejuízo só não é maior porque muitos Estados americanos seguem de forma independente suas políticas. Observamos a expansão da energia fotovoltaica, a partir da energia solar. É possível ver políticas que vão ajudar nessa questão de clima, mas nacionalmente esse presidente cético (Donald Trump) pediu para sair de um acordo global que foi constituído ao longo de anos. É muito difícil chegar a um consenso e formar um protocolo, mas a natureza está sinalizando com furacões mais intensos. É como fosse dito que se o Trump não aceitar esse acordo, os Estados Unidos terão perdas econômicas e haverá um impacto maior para o País. Infelizmente, vivemos um modelo econômico consumista e só se pode se falar em influência nas mudanças quando se fala em perdas de bilhões de dólares.

E por que o Acordo de Paris estabelecia esse limite de 1,5ºC?
Os cientistas trabalham com modelagem científica e desenvolvem vários cenários por meio de análises de combinação. Eles analisam aspectos como o aumento do nível do mar ou da temperatura do planeta. Esse limite foi criado com um dos cenários mais otimistas. Existem estudos com o aumento de 2ºC provocando a aceleração do processo de derretimento de geleiras e do aumento do nível do mar até o fim do século.

Recentemente, foram divulgadas imagens de blocos gigantes de gelo se desprendendo das calotas polares. Isso contribui para o aumento do nível do mar?
Quando se avalia o desprendimento de um bloco desses isoladamente, não há influência no aumento do nível do mar, mas é um indicativo de que pode haver mais blocos se soltando e que se isso continuar vai haver a intensificação desse processo e vai haver aumento do nível do mar. Além disso, o oceano sofre um processo de dilatação de seu volume com o aumento da temperatura.

Os Estados Unidos possuem um volume de emissão de gás carbônico per capita ao ano de 19,22 toneladas, enquanto o Brasil emite 1,75 tonelada por pessoa ao ano. Mesmo assim, o Brasil é considerado o sétimo país mais poluidor do planeta. Por que isso?
Isso quando se considera o desmatamento de áreas florestais para formação de pasto. Além de desmatar e queimar as florestas, os produtores rurais ocupam essas áreas com gado e com a agricultura. Com a criação de gado, por exemplo, há uma emissão intensificada pelo próprio bovino, já que ele é ruminante e emite metano, que é um gás 21 vezes mais potente que o CO² nesse sentido e contribui bastante para o efeito estufa. Se a pessoa optar por não comer carne, também estará contribuindo para evitar o aquecimento global. Hoje você vê veganos e vegetarianos adotando essa opção pela questão ambiental. Tendo consciência, a gente pode tomar decisões para mitigar o problema.

O que o cidadão comum pode fazer para reduzir essa escalada no aquecimento do planeta?
A primeira coisa a ser feita é ele ter consciência do problema. Muitas pessoas não conseguem entender que a mudança climática está acontecendo. Qualquer cidadão pode optar por consumir menos água e acondicionar lixo de forma adequada. Basta observar que o resíduo produzido e lançado nas vias entope os bueiros. Isso contribui para as inundações e enchentes na cidade. O papel do cidadão também é escolher produtos observando sua origem. Atualmente, quase toda a produção mundial de produtos industrializados vem da China. É preciso pesquisar se nessa produção está envolvido trabalho escravo ou se a matriz energética é muito suja. Temos esse poder de barganha. Se não vou andar de carro e vou de metrô, também contribuo para a redução dessas emissões.

E como as empresas podem reduzir a emissão de gases poluentes?
Algumas empresas já fazem isso. Hoje há como substituir o combustível fóssil por alternativas menos poluentes e existem processos de produção ambientalmente sustentáveis. A cada realização de um evento global discutindo o tema, surgem normas para reduzir a emissão de gases. Há o ISO 14000 e outros protocolos como o Índice Sócio Ambiental. De certa forma, essas certificações contribuem para que as empresas se adequem e contribuam para reduzir seu impacto. Aqueles que observam esses protocolos acabam ganhando competitividade.

Um dos primeiros eventos globais em que se discutiu o desenvolvimento sustentável foi a Eco 92, realizada no Rio de Janeiro. Qual o legado do evento?
Naquela época, as evidências do aquecimento do planeta surgiram na imprensa e discutia-se principalmente a destruição da camada de ozônio. Com os estudos produzidos durante a Rio 92, foi criada a convenção de mudanças climáticas da ONU. Até hoje, foi o evento com a presença do maior número de chefes de Estado. Fora a convenção de clima, foi criada a convenção de biodiversidade e de combate à desertificação. De lá até hoje, o cenário foi intensificado por um desenvolvimento insustentável. A curva de emissões de gases poluentes aumentou em todo o mundo e o Protocolo de Kyoto, que foi realizado anos depois, não foi um protocolo de sucesso, pois os países signatários foram apenas os países industrializados, e não conseguiram reduzir 5,2% em relação aos níveis de 1990 no período entre 2008 e 2012. Basicamente, observamos a intensificação do aquecimento global com a ocorrência de eventos extremos mais frequentes. O crescimento da inovação tecnológica não acompanhou a evolução da mudança climática.

E o efeito estufa contribui para o aumento de doenças?
Esses gases que estão na atmosfera bloqueiam a dissipação da energia que chega na Terra e mantêm o calor como se fosse uma estufa mesmo. Com uma maior concentração de poluentes, há o aumento de doenças respiratórias e de infartos. Após o período de muitas chuvas, as cidades devem estar preparadas para o aumento de doenças relacionadas a vetores como mosquitos, entre eles a dengue, a chikungunya e a zika. Em cidades desprovidas de estrutura básica, há risco de aumento de casos de leptospirose, relacionadas à falta de saneamento. As mudanças climáticas possuem complexidade para todos os setores, mas se os municípios não reagirem à adaptação, o custo para eles será muito maior. É preciso tornar as cidades mais resilientes.

E em relação à produção de alimentos? Ela será afetada?
Há um estudo realizado pela Embrapa de que haverá migração de culturas para áreas mais frias. Isso valerá para o café, para o milho e para a soja. Algumas vão se adaptar em áreas mais frias e outras para áreas mais aquecidas, mas provavelmente haverá crise na produção de alimentos. Estudos desenvolvidos pela FAO (Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura) mostram que alguns países mais vulneráveis vão vivenciar situações de fome com o seguimento da mudança climática.

Qual a última mensagem que você deixa sobre a mudança climática?
Posso falar que a mudança climática é real. Antes se falava dela no futuro, mas ela já está acontecendo. E a tendência é de que ela seja cada vez mais intensa. A gente precisa pensar nas futuras gerações, em nossos netos, e qual planeta vamos deixar para eles. Eles vão vivenciar anos mais difíceis com o aquecimento global.