O Brasil peca na forma como trata sua população indígena. O fato dos índios serem muitas vezes considerados coitados leva a adoção de políticas paternalistas e assistencialistas que estão longe de resolverem os problemas vividos por estes brasileiros. A afirmação é de Edilene Coffaci Lima, doutora em Antropologia Social e professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Parte do equívoco começa já na forma com que se tenta ''integrar'' os índios na sociedade ''branca''. ''Se o entendimento por integração for a completa absorção dos índios pela nossa sociedade, é melhor esquecer. Temos mais de 500 anos de história que mostra que esse projeto só apresenta fracassos.''
O fracasso pode ser medido em números. Antes da chegada dos europeus existiam cerca de 100 milhões de índios na América. Só no Brasil, o número chegava a cinco milhões. Atualmente, de acordo com dados da Fundação Nacional do Índio (Funai), cerca de 460 mil índios vivem no Brasil, distribuídos em 225 sociedades. Esse número corresponde a 0,25% da população brasileira.
Há várias tentativas para reverter este quadro. Uma delas foi a criação do Dia do Índio, comemorado hoje. A data é utilizada para fomentar a discussão sobre a realidade vivida pelos indígenas brasileiros. A seguir os principais trechos da entrevista concedida por Edilene Lima.
Historicamente os índios aparecem na condição de injustiçados. A senhora acha que essa é a realidade?
Inequivocamente o que se passou nos primeiros anos da colonização foi um genocídio. As estimativas medianas dão conta de que cinco milhões de índios habitavam o território que hoje forma o Brasil. Mesmo com o crescimento avantajado da população indígena nos últimos anos, ela ainda não alcançou um quinto do que era. Os números não falam sozinhos. É certo que o que se passou com os índios nos primeiros anos da colonização não se qualifica simplesmente como injustiça, foi algo bem mais forte.
Nesse contexto, como a senhora avalia o contato dos índios com o homem branco? Essa aproximação ''forçada'' pode ter prejudicado a conduta dos índios, deixando-os mais violentos?
A diversidade étnica brasileira, apesar do impacto demográfico nos primeiros anos da colonização, é notável. Os índios que hoje formam parte da nação brasileira tiveram de superar extremas iniquidades para chegarem até aqui. Sobre os índios estarem mais violentos, posso lhe dizer que em uma pesquisa encomendada pelo Instituto Socioambiental ao Ibope, em 2000, os brasileiros apresentavam uma autocrítica bastante forte. Quase 80% dos entrevistados responderam afirmativamente à pergunta ''Os índios são bons mas aprendem muitas coisas ruins com os brancos?''.
Atualmente, há quem considere os indígenas coitados e inferiores. Percebe-se também que muitos índios se colocam nessa posição. Por que isso acontece?
Creio que o conjunto de necessidades e carências faz com que os índios sintam-se dessa forma. A sociedade deve oferecer condições para que eles possam gerir seu próprio destino. Mais importante do que saber por que certas pessoas imaginam que os índios são coitados, é entender as causas dos problemas que sustentam essa percepção e os meios que podem existir para sanar os problemas que a fazem surgir. Quando a percepção dos índios como coitados conduz exclusivamente às ações paternalistas e assistencialistas, os problemas restam bem distantes de serem resolvidos. As privações materiais são moeda corrente em determinadas regiões do país e o motivo, infelizmente, costuma ser um só: privação de terra. O Mato Grosso do Sul tem terras indígenas diminutas para uma população indígena em franca expansão. Como sabemos, os conflitos entre fazendeiros e indígenas avolumam-se e as soluções sequer apontam no horizonte.
Sendo assim, a senhora acredita que ainda existe a possibilidade de o índio se integrar por completo na sociedade brasileira?
Se o entendimento por integração for a completa absorção dos índios pela nossa sociedade, é melhor esquecer. Temos mais de 500 anos de história que mostra que esse projeto só apresenta fracassos. Se ele não foi bem sucedido nos últimos 500 anos, por que seria agora? Digamos que os usos e costumes da nossa sociedade não são assim tão inevitáveis. Os índios têm seus próprios códigos culturais.
E considerando essa cultura própria dos índios, que é muito diferente do restante da sociedade, em um caso de doença, por exemplo, determinados costumes e valores devem ser respeitados ou é preciso intervir?
Desconheço casos em que algum índio não recebeu atendimento por incompatibilidade entre as concepções nativas e as concepções ocidentais de saúde e doença. Entre os Katukina do estado do Acre, que é o grupo com o qual eu pesquiso tem mais de 15 anos, por exemplo, há toda uma ideia de que as substâncias amargas e as perfurações tornam os corpos fortes e sadios. Compreensível então que os remédios e injeções sejam bastante apreciados entre eles.
Os direitos dos índios são garantidos pelo Estatuto que vigora desde a década de 1970. Essa legislação é, realmente, respeitada?
O Estatuto apresenta inúmeros descompassos com a realidade atual. A Constituição de 1988, que resguardou inúmeros direitos indígenas, é posterior ao Estatuto do Índio. Há 15 anos está em discussão um Projeto de Lei no Congresso Nacional para substituir o atual. Não há dúvida de que o novo Estatuto será um instrumento jurídico importante e deve-se garantir que não se tente a partir dele reduzir direitos que estão previstos na Constituição.