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Um império absolutista, a ausência de direitos civis, a economia agrícola, a deflagração de um processo de industrialização precário, a miserabilidade da maioria da população e, por último, a participação na Primeira Guerra Mundial (1914-1918) formavam o cenário no qual foi deflagrada a Revolução Russa, em 1917.

Inicialmente, em fevereiro, o último czar, Nicolau II (1894-1917), abdicou diante da pressão popular e formou-se um governo provisório de inspiração no modelo liberal europeu. Em novembro (outubro, pelo calendário juliano, adotado na Rússia naquela época), Lenin, líder dos bolcheviques, a corrente majoritária do Partido Operário Social Democrático Russo, de inclinação marxista, com apoio de operários, camponeses e soldados, tomaria o poder. Formava-se o primeiro Estado socialista da história, com a promessa de extinção da propriedade privada dos meios de produção, tomada do poder por parte do proletariado e implantação de uma sociedade igualitária.

Cem anos depois, a avaliação é de que a utopia socialista se converteu em um pesadelo totalitário, muito semelhante à monarquia absolutista que a revolução havia derrubado. Para Sérgio Ribeiro Santos, professor de história da Universidade Presbiteriana Mackenzie, uma das principais consequências foi a criação de um sistema bipolar na política internacional, com várias implicações bélicas e políticas. "O que se viu foi a criação de uma 'casta' política e militar detendo todo o aparato burocrático e estatal", afirma.

O que motivou a Revolução Russa?
Em termos históricos, é difícil falar em um motivo. Toda conjuntura precisa ser analisada ao longo de toda uma estrutura temporal mais longa. Mas neste caso, estas e outras revoluções estavam ligadas ao esgotamento de um modelo político, no caso russo, uma monarquia absolutista. Decorrentes desta situação, temos as condições socioeconômicas que geraram insatisfação social, principalmente quando era preciso manter os privilégios de uma nobreza. Outro ponto que não pode ser esquecido é que todo o processo de tomada de poder requer a perda do apoio militar por parte de quem está no comando. Este se aliou aos camponeses e à nova classe proletária que surgia após o processo de industrialização da Rússia. Também se deve buscar os ideais revolucionários que pairavam sobre a Europa desde o final do século 18, mas que já tinham sido sufocados em diversas outras ocasiões. No entanto, após a difícil situação da guerra com o Japão e com as consequências terríveis da Primeira Guerra Mundial, os ideais socialistas alcançaram um terreno fértil.

Quais foram a consequências mais visíveis para a Rússia (depois transformada em União Soviética)?
A primeira foi a mudança de regime, de um sistema monarquista para uma república, ainda que não democrática. Em seguida, um período de transição no próprio processo revolucionário, saindo de um primeiro momento democrático liberal para uma ditadura do proletariado após os bolcheviques tomarem o poder. Depois, foi o protagonismo que ela assumiu nos anos seguintes, principalmente levando a política internacional para um sistema bipolar. Esta situação se deu após a satelização de diversos países no Leste europeu e o crescimento econômico e militar nos anos seguintes à revolução.

Os ideias socialistas foram alcançados?
O sistema estamental era condenado e a teoria socialista propunha a criação de uma sociedade igualitária, sem classes sociais, tais como existiam nos países capitalistas. No entanto, o que se viu foi a criação de uma "casta" política e militar detendo todo o aparato burocrático e estatal. Típico de países em que há um partido único.

A Guerra Civil e a perseguição aos adversários internos do partido estavam "previstas" quando foi feita a revolução?
Se essa proposta estivesse evidente desde o início, provavelmente o apoio aos líderes revolucionários não teria sido o mesmo. No entanto, é importante observar que todo viés autoritário traz em si o germe da eliminação de qualquer forma de contestação ou ideias contrárias. Somente em regimes essencialmente democráticos é possível a alternância de poder e o exercício de uma política dialógica. A concentração de poder cria ditadores que usarão todos os recursos à sua disposição para se manterem no poder.

O regime totalitário implantado pelo comunismo, especialmente sob Stalin, foi responsável pela morte de milhões de pessoas. Por que isso ocorreu?
Manutenção do poder a qualquer custo e conivência dos que se beneficiavam da situação, pois sem esta conivência e base de apoio, uma só pessoa não seria capaz de tal atrocidade. Também deve se considerar que os regimes totalitários buscam legitimações para seus atos por meio do discurso e de construções de narrativas, além de um profundo controle das informações.

Por que o Holocausto judeu, sob Hitler, parece gerar mais comoção do que a matança promovida pelo regime comunista na União Soviética?
Uma das razões é que há certa romantização das revoluções socialistas e há uma tendência a sermos mais tolerantes com as ditaduras de esquerda do que com as demais, pois tudo aparentemente é feito em nome do povo. Há também o fato de que o Holocausto judeu foi exposto ao mundo após a vitória dos países aliados, que ao vencerem a Segunda Guerra expuseram ao mundo as atrocidades cometidas nos campos de concentração. Nos países da Cortina de Ferro, não se deu o mesmo. As informações não veiculavam da mesma forma e o fim da União Soviética não se deu por uma guerra, além de que os judeus tinham uma ligação muito mais forte com os países ocidentais do que os russos.

Milhões de ucranianos morreram de fome enquanto a produção era exportada, o chamado holocausto ucraniano (holodomor). Por que esse fato histórico é tão pouco conhecido?
Em parte, a resposta pode ser depreendida da pergunta anterior. Mas também há o fato de que os consumidores pouco se perguntam sobre a origem dos seus produtos de consumo. Temos um exemplo: muitos consomem mercadorias produzidas em países asiáticos e não se perguntam sobre as condições de trabalho. Outra questão está ligada à produção dos nossos livros didáticos, que muitas vezes, num viés ideológico de esquerda, não tratam assuntos que possam enfraquecer sua propaganda política.

Por que houve fraca reação das demais nações quanto ao regime soviético?
Na verdade, a reação se deu em outros campos e num grande espaço de tempo. O confronto não foi direto, mas houve uma corrida entre Estados Unidos e União Soviética para ampliarem sua influência no mundo. Tivemos conflitos no Afeganistão, Vietnã, Coreia, Cuba, países da África, América Latina. Governos ditatoriais receberam apoio, fosse de um lado, fosse do outro, desde que se alinhassem a um sistema. Mas uma das maiores frentes de batalha foi no campo econômico, tecnológico e na guerra de propagandas.

Quais foram as consequências da Revolução Russa para o mundo?
Foram enormes em diversos campos. Uma das principais foi a criação de um sistema bipolar na política internacional, com todas as consequências bélicas e políticas já mencionadas.

China, Cuba e Coreia do Norte sofreram que tipo de influência da Revolução Russa?
A China constitui-se um caso especial, pois ela não se tornou uma república comunista satelizada pela União Soviética. Passou a ter vida própria, inclusive criando seu próprio campo de influência regional. No entanto, as concepções ideológicas acabam por influenciar em alguma medida. Já Cuba é caso típico de uma maior influência e financiamento inclusive da União Soviética. A Coreia do Norte assemelha-se a outras regiões, onde grupos internos que disputavam o poder recebiam apoio de norte-americanos ou soviéticos.

O Brasil teve algum tipo de influência?
Principalmente no campo ideológico e educacional, em especial nas universidades públicas. O golpe militar de 1964 se deu exatamente neste contexto de Guerra Fria e essa foi uma narrativa amplamente usada para justificar a tomada do poder pelos militares, apoiada por setores da sociedade civil.

Como o regime chegou ao fim na União Soviética?
A partir da década de 1980, tivemos um processo mais intenso de globalização, principalmente em termos econômicos, no qual é impossível a sobrevivência numa política de isolamento. Houve um esgotamento financeiro; a tão propalada igualdade não ocorreu, gerando tensões internas; e os países ocidentais também avançaram muito mais em termos tecnológicos. Era uma questão de sobrevivência. A diferença do capitalismo é que esse continuamente se reinventa e não tem dificuldades de se adaptar, o que não se observa no socialismo.

Qual o peso do comunismo no cenário político do mundo atual?
Talvez muito mais retórico. Somos uma sociedade profundamente movida pelo consumo. Enquanto pudermos consumir, nos sentimos cidadãos plenos. Mesmo porque os modelos históricos não foram bem sucedidos. A teoria carece de uma prática que tenha dado certo.