Mesmo com um histórico de boas relações internacionais e sem casos de atentados em solo nacional, o Brasil passou a contar com sua própria Lei Antiterrorismo, que tramitou no ano passado no Congresso Nacional e foi sancionada no último dia 16. O texto disciplina o que é terrorismo – termo que já constava no inciso 43 do artigo 5º da Constituição Federal –, baliza ações investigatórias e processuais e reformula o conceito de organização terrorista, entre outros itens.

A lei, que passa a vigorar às vésperas dos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro, é de autoria do governo federal, mas obteve críticas por parte de movimentos sociais que temem serem enquadrados na nova legislação.

O professor Leandro Piquet Carneiro, do Instituto de Relações Internacionais da Universidade de São Paulo (USP), considera que o Brasil não pode se esquivar de suas responsabilidades no esforço global de combate e contenção ao terrorismo e diz que a preocupação da legislação vai além dos atentados, regulamentando métodos investigatórios e trocas de informações entre agências de inteligência para evitar atos que financiem ou suportem as práticas a nível internacional. Também afirma que há dispositivos que impedem a classificação de movimentos sociais e políticos como grupos terroristas.

O Brasil é um país de tradições diplomáticas muito fortes. Por que precisamos de uma lei de combate ao terrorismo?

Exatamente porque somos um país inserido no esquema internacional e na produção de um regime que controla o problema do terrorismo no mundo há décadas. O Brasil é signatário, ratificou acordos importantes no âmbito da Organização dos Estados Americanos (OEA) e da Organização das Nações Unidas (ONU), relativos a quase todos os aspectos importantes envolvidos aí: sequestro de aeronave, lavagem de dinheiro, tráfico de armas. Isso tudo tem implicações no presente. Nós temos uma história de cooperação com o sistema internacional que combate e controla o terrorismo e o Brasil ficou para trás no que diz respeito à adoção de uma legislação doméstica que tipifica o crime, define as penas, melhora ou permite que o sistema de Justiça Criminal e as polícias tenham uma atuação específica diante desse problema.

Mas não existe um histórico de atuação terrorista dentro do Brasil. Para quem seria, então, dirigida essa lei?

País nenhum pode hoje se definir como uma autarquia no sentido de que não tem responsabilidade com o esforço global de controle de fluxo de dinheiro, armas, pessoas. Essa visão isolacionista de que não temos ou não tivemos um ato terrorista importante desde o período da ditadura militar não quer dizer que o Brasil pode se colocar como o país que não tem compromisso diante das outras nações, naquilo que diz respeito às atividades que são ou que podem ser desenvolvidas no país e que afetam o contexto internacional, principalmente na questão da lavagem de dinheiro, do tráfico internacional de pessoas, a passagem de estrangeiros pelo país, que é muito intensa, e a questão do tráfico de armas. Pelo menos nesses três aspectos o Brasil participa de forma significativa, principalmente no contexto das Américas, de todo o mercado ilegal que aquece as redes e garante a operação logística dos grupos terroristas. Isso é um fato, o Brasil tem um sistema financeiro muito integrado mundialmente, a questão de termos no País um crime organizado muito forte e diversificado em todo o território facilita a conexão e operação de atividades terroristas. O crime organizado e o terrorismo são coisas diferentes, mas um se vale do outro no que diz respeito às suas cadeias de fornecimento de armas, pessoas e passagem de pessoas por fronteiras e finanças. Nesse sentido, o Brasil não pode achar que não tem compromisso diante do resto do mundo e simplesmente responder a esse esforço mundial contra ameaças apenas respondendo: "Olha, isso não aconteceu aqui, então não vamos adotar leis". A adoção de leis é importante porque a investigação de atos terroristas e de grupos terroristas, caso fosse necessário fazer alguma investigação no Brasil, emperraria por causa da legislação. Teríamos problemas com autorização de escutas e o tipo de operação policial necessária diante de uma ameaça terrorista é muito diferente do que a gente faz com o crime. As ações precisam estar ancoradas e amparadas na lei e, por isso, ela é importante, porque permite a ação da polícia e do Ministério Público ao mesmo tempo. Quando precisa fazer uma prisão, fazer uma escuta, monitorar a transferência de dinheiro especificamente para fins de atividade terrorista, é fundamental ter uma lei autorizando isso no País.

Quando falamos em terrorismo, vêm à cabeça os atentados. Mas, segundo sua explicação, o ato terrorista vai além do atentado. Ele é suportado por uma rede que a Lei Antiterrorismo tipifica e viabiliza a investigação e o combate, é isso?

Eu vejo exatamente assim. O que diz respeito ao Brasil hoje é a recepção das delegações dos Jogos Olímpicos e a contribuição ou atividade que pode ser desenvolvida aqui por organizações terroristas, visando perpetrar atos e ações em outros territórios. Temos vizinhos que sofreram décadas com isso, como a Colômbia. Tudo o que aconteceu lá passou por aqui: explosivos, armas. A fronteira entre Brasil e Paraguai é citada em todos os relatórios de agências americanas, Interpol, Ameripol. Todos apontam para o problema da tríplice fronteira e de Foz do Iguaçu como grande centro de lavagem de dinheiro. E mais: Foz do Iguaçu tem uma comunidade de imigrantes do Oriente Médio muito grande e isso precisa ser tratado com atenção. Jamais com preconceito ou qualquer medida contra a presença dessas pessoas, mas precisa ser monitorado o que está acontecendo. E há evidências de que esses grupos de imigrantes têm apoiado, com financiamento e envio de dinheiro, várias atividades no Oriente Médio. Isso coloca o Brasil dentro de uma cadeia logística do ilícito e do terrorismo em que é muito importante assumirmos a nossa parte e a nossa responsabilidade no controle desse problema.

Várias pessoas que criticam a Lei Antiterrorismo argumentam que ela poderia enquadrar movimentos sociais e manifestações públicas. A lei não viabiliza essa identificação?

São coisas muito diferentes. Não acho que haja dificuldade em estabelecer uma diferença entre crimes cometidos no âmbito de manifestações políticas, como um ato de vandalismo ou um ato de violência política, diferentes de um ato terrorista no sentido em que estamos especificando nesta lei. A lei aprovada tem uma cláusula que deixa clara a questão da exclusão quando o ato é perpetrado em contexto de movimento coletivo, que pode até ter uma forma passiva de classificação como ato terrorista. Ele pode ser análogo a um ato terrorista, mas ele vai ser produzido e tratado como ato coletivo de violência política. Temos uma lei que estabelece claramente uma diferença e nenhum processo tende a vingar, ter sucesso, se não respeitar essa diferença. Existem riscos à esquerda e riscos à direita, uma vez que, se olharmos vários movimentos terroristas hoje, nos Estados Unidos, há atentados contra clínicas de abortos, atentados em nome de movimentos religiosos cristãos. Isso é muito importante, porque pode haver um movimento radical que não se identifique com a esquerda. Essa radicalização da esquerda é coisa dos anos 1960, 1970, na Itália, na Alemanha, mas isso jamais aconteceu depois, principalmente na América do Sul. Acho que, no Brasil, nunca mais teve essa relação entre partido de esquerda e terrorismo. Não há uma radicalização de grupos que se descolaram desse movimento de esquerda que criou organizações terroristas. Por isso, é muito fácil, sobretudo do ponto de vista político, separar uma coisa da outra, inclusive na identificação de autoria. Identificar um ato de vandalismo contra uma instituição, contra um banco, não cabe no escopo dessa lei.

O que ocorreu semana passada na Bélgica seria mais um exemplo de que ninguém está definitivamente livre de atentados terroristas?

A Bélgica estava no centro do atentado em Paris em novembro e a resposta veio agora. Há evidências de que existem outros atentados a caminho e a questão de termos as Olimpíadas a caminho vai exigir maior seriedade e segurança nos Jogos e a necessidade de defender as delegações. É o momento em que esses grupos radicais buscam a visibilidade e, se a segurança for fraca, vamos correr riscos sérios durante os Jogos.

Mas essa foi uma preocupação que não houve na Copa do Mundo de 2014.

A Copa e as Olimpíadas são muito diferentes do ponto de vista de participação. Não há um histórico de atos terroristas em Copas do Mundo significativo, mas há vários em Olimpíadas. Claro que vem à mente Munique, em 1972, mas a realização na Espanha (em Barcelona, em 1992) também foi muito agitada, o ETA perpetrou vários atentados no período dos Jogos Olímpicos e foi um esforço enorme porque eles tentavam atrair a visibilidade naquele período. E, nesse contexto em que a situação no Oriente Médio e na Síria, em particular, está muito grave, precisamos levar a sério o risco de acontecer alguma coisa contra as delegações, principalmente contra os países envolvidos no cenário da guerra, como Rússia, Estados Unidos, Israel; sempre é um objeto de tensão para aqueles grupos e isso tem que ser levado a sério. Definitivamente, estamos dentro de um problema que não pode ser diminuído.

Por que o senhor acredita, então, que houve levante contra a Lei Antiterrorismo?

Isso foi muito localizado. Se for olhar agora, a figura inteira é uma proposta do Executivo, aprovada pela Câmara dos Deputados, houve alterações no Senado, voltou para a Câmara, onde recuperou as características do Executivo e foi aprovada. Acho que existem setores da opinião pública menos importantes do ponto de vista do processo político que foram contra, mas eu não vejo uma resistência das lideranças políticas à proposta. Inclusive, o PT fez essa proposta e enviou ao Legislativo. Foram opiniões de acadêmicos, de movimentos de esquerda, mas, na sociedade, não vejo essa rejeição.

Acha que a sociedade sente-se mais segura?

Acho que sim, porque cada vez mais essa ameaça do lobo solitário, do cara que se explode na seção de check-in do aeroporto, como foi em Bruxelas, toda essa estrutura nova de terrorismo dos anos 2000-2010 traz uma consciência, sim, de que é preciso um esforço integrado, coordenado. Acho que o grande segredo do sucesso é coordenação e troca entre os sistemas de inteligência e a produção de ambientes mais seguros, e um mundo mais seguro depende fundamentalmente disso: de coordenação e troca. Vários analistas apontaram para as falhas de segurança na Europa justamente neste aspecto: faltou coordenação. E, no Brasil, precisamos cumprir a missão, precisamos coordenar o esquema de inteligência, coordenar centros integrados com agências diferentes, Polícia Militar, Polícia Civil, Polícia Federal, polícias estrangeiras. Essa ideia de trabalhar em rede, de forma cooperativa, é o que prevalece hoje no mundo e não há como fugir desse modelo, da responsabilidade de fazer algo diante desse cenário.