Imagem ilustrativa da imagem COOPERAÇÃO - Projeto Dedica volta a funcionar em 2017
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A partir de 2017, Curitiba volta a contar com o Programa Dedica, que atende crianças e adolescentes vítimas de agressão grave. O programa funcionou de 2008 a 2014 de forma voluntária no Hospital das Clínicas (HC), mas foi suspenso por falta de regulamentação.

No dia 15 de dezembro, o Ministério Público do Paraná firmou um termo de cooperação com a Universidade Federal do Paraná (UFPR), Poder Judiciário, HC e Associação dos Amigos do HC para a retomada do programa.

A promotora Tarcila Santos Teixeira, da Promotoria de Justiça de Infrações Penais contra Crianças, Adolescentes e Idosos, foi uma das articuladoras para que o Dedica voltasse a funcionar. Segundo ela, este era o único programa na Capital que atendia de forma especializada a criança e o adolescente vítimas de violência. Com o termo de cooperação, o Dedica ganhou uma sede própria, adquirida com financiamento de R$ 3 milhões, aprovado pelo Conselho Estadual de Defesa da Criança e Adolescente (Cedca-PR).

Como iniciou o Projeto Dedica?
Ele iniciou através de um trabalho de voluntariado de uma equipe de profissionais que trabalhavam atendendo crianças, adolescentes e suas respectivas famílias vítimas de violência grave, junto ao complexo médico do HC. Por ser um projeto informal e que não estava regulamentado, em 2014 ele foi suspenso. Em função disso, o Ministério Público começou a atuar para regulamentar esse cenário. Até porque, por incrível que pareça, é o único programa de atendimento à criança e ao adolescente vítima de violência em Curitiba. Depois de várias reuniões, conseguimos que a UFPR aprovasse um programa de atendimento às crianças vítimas de violência. Então, ele passa a ser um programa oficial, mas será à parte do HC.

Ele não vai funcionar mais dentro da estrutura do HC?
É um projeto autônomo, mas apoiado pelo hospital. Com a alteração da rubrica do projeto no Cedca-PR, conseguimos recurso para a compra da sede própria. Agora, estamos há mais de um ano nos reunindo com as entidades parceiras (MP, Poder Judiciário, UFPR, HC, Associação de Amigos do HC, governo do Estado e prefeitura) para que todos possam contribuir para que o programa tenha recursos necessários para sua viabilização. Mas os recursos financeiros serão subvencionados pelo próprio HC. A Secretaria de Saúde também pode destinar recursos. E as demais entidades vão facilitar os acessos dos profissionais, fazer os encaminhamentos, acesso a informações médicas, tudo para que a criança tenha o melhor atendimento possível.

Como vai funcionar esse atendimento às crianças e aos adolescentes vítimas de violência? Como eles terão acesso ao Dedica?
Estamos construindo o fluxo de como isso vai funcionar. Mas no termo de cooperação técnica consta que quem pode encaminhar é o MP-PR e o Poder Judiciário, através da Vara da Criança e da Vara da Infância e Juventude.

E o Conselho Tutelar?
O Conselho Tutelar não pode encaminhar direto. O que pode ser feito é a pediatra Luci (Pfeiffer), que é a gestora do programa, receber as crianças e adolescentes do HC. Ela pode receber alguma solicitação de algum outro órgão, mas eles não podem encaminhar direto. Eles têm que fazer a solicitação, que ela vai avaliar. O mais adequado a título de orientação é que, se uma criança sofreu alguma violência grave, ela é uma vítima de crime. Ela tem que passar pela Vara de Crimes Contra a Criança. O caminho mais adequado para qualquer órgão que tenha a notícia de uma criança que sofreu violência é que faça o pedido junto ao MP. Assim, teremos o panorama geral da situação daquela criança, se tem alguma medida protetora, por exemplo. São informações importantes e necessárias para os profissionais que vão prestar atendimento a essa criança.

Depois que ela passar por esse trâmite, ela vai ter um atendimento multidisciplinar? Será feito o atendimento médico e psicológico?
Do emocional, de eventualmente alguma doença. Porque esse é um dos braços do termo de cooperação técnica. O programa terá uma entrada direta para solicitar exames, consultas com especialistas. E dentro do programa teremos pediatras e psicólogos que vão dar esse suporte psíquico à criança.

O programa já está em funcionamento?
Como assinamos o termo de cooperação na semana que antecedeu o Natal, ficou estabelecido que em janeiro vamos sentar para construir o fluxo de atendimento para acertar os encaminhamentos. Acredito que no final de janeiro e começo de fevereiro já estará em pleno funcionamento.

Até começar o Dedica, não existia nenhuma ação de suporte à criança e ao adolescente vítima de violência na Capital?
Oficialmente, temos só uma unidade, que se chama Laboratório Encantar, que presta atendimento à criança vítima apenas quando ela é encaminhada pelo sistema oficial da cidade. Tem que ir encaminhada pelo Sistema de Saúde ou Centro de Referência de Assistência Social (Cras). O Laboratório Encantar não pode ser procurado por nós, pela vítima. E eles não conseguem suprir nem 1% da demanda que temos em Curitiba. Hoje, temos em média, conhecidas 4 mil vítimas de violência em Curitiba. E 90% são crianças que sofreram crime sexual.

Esses 4 mil casos são anuais ou é o que está tramitando na Justiça?
É o que está tramitando. Eu conto com o que estou trabalhando hoje. Amanhã eu acabo um e entra dois. Hoje, a média é de 3 mil inquéritos em andamento e mil feitos judiciais em andamento. É um número muito expressivo de vítimas. O Paraná é o terceiro estado do País em números de violência contra a criança. Precisamos nos estruturar melhor para fazer frente a essa demanda. O Estado (governo) atua no sentido de apurar o crime e punir. E esquece da sua proteção integral, como está previsto na Constituição Federal e no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). A sociedade, a família e o Estado têm a obrigação de proteger essa criança. Se ela sofreu uma violência grave, nós já falhamos. E damos de retorno para ela mais uma falha. A criança é abordada como instrumento de prova. Ela é entrevistada, vai para avaliação psicológica, MP, juiz, para quê? Para contar o que aconteceu, para que possamos punir alguém. Mas ninguém olha para ela e diz o que ela precisa para superar isso. Chega de olhar para a criança como instrumento de prova. Temos que olhar como um sujeito de direitos, que precisa receber apoio psicológico, médico, para superar e tocar a sua vida em frente.

Por que há no Paraná tanta violência contra crianças e adolescentes?
Não tenho essa resposta. Posso explicar algumas circunstâncias que apuramos nestes anos que temos estudado esta temática. A violência sexual acontece dentro de casa. A estatística apurada no dia a dia do nosso trabalho aponta que 90% da violência ocorre no ambiente familiar. Movida pela intimidade facilitada. Os agressores sexuais são os pais, avós, irmãos, tios, padrinhos. O número um é o pai. Em média, atinge a menina de cinco a dez anos. Percebemos que o que move tudo isso é a facilidade do ambiente familiar, que propicia a ação do abusador. O nosso acusado tem um perfil diferente. Ele estão em todas as classes sociais e níveis culturais. E o abuso acontece na intimidade e por acontecer dessa forma a criança demora muito tempo para revelar.

Normalmente, quanto tempo a criança ou adolescente demora para denunciar o abuso?
Cerca de 70% das crianças demoram de um a dois anos para contar. E elas demoram não só pelo medo, mas há alguns fatores que fazem com que elas escondam. É muito raro ela sofrer a violência e já contar. Os fatores primordiais são o que chamamos de síndrome do segredo. Do tipo: "Isso é um segredinho nosso, não vamos contar para ninguém". Num primeiro momento, muitas meninas acreditam que elas são as prediletas, foram escolhidas. É a preferida do papai. O segundo fato é que muitas crianças levam anos para revelar porque não entendem que alguma coisa errada está acontecendo. Então, elas não contam ou porque não entendem que aquilo é errado ou por causa da relação de segredo que acham que é benéfica, porque pensam que se revelar aquilo vai acabar, porque elas acham que foram as escolhidas.

Existe a possibilidade do Programa Dedica ser implantado no interior do Estado?
Acho difícil, porque ele está vinculado ao HC e aos profissionais que estão ali. Mas a doutora Luci fez questão de colocar no termo de cooperação um serviço de capacitação de profissionais para atuar neste ramo, a multiplicação do conhecimento específico. Então, isso pode ser feito através de convênios com prefeituras, que prestem esses atendimentos especializados. Porque é importante ter a sensibilidade de que os profissionais que trabalham neste ramo têm que se especializar e saber abordar de uma forma muito específica.

Mas pode ser um modelo para outros municípios?
Pode ser multiplicado, com certeza.