Desde a popularização das redes sociais, o comportamento do ser humano nunca mais foi o mesmo. Aprendemos a nos relacionar virtualmente e a Geração Z, os chamados nativos digitais, protagonizam, de tempos em tempos, fenômenos que começam a ser investigados pela ciência.

Neste ano, o jogo virtual "Baleia Azul" e o seriado "13 Reasons Why", por exemplo, lançaram luz sobre o comportamento de adolescentes na internet, levantando discussões sobre depressão, autolesão, suicídio e bullying.

Agora, o novo movimento é o auto-cyberbullying, que consiste no ato de praticar bullying contra si próprio na internet, de forma anônima. O assunto veio à tona com um estudo recente feito em escolas americanas, publicado na revista científica "Journal of Adolescent Health".

Os resultados mostram que um em cada 20 alunos afirma ter praticado o auto-cyberbullying. Foram entrevistados 5.593 estudantes dos ensinos fundamental e médio, entre 12 e 17 anos. Aqueles que são vítimas de bullying virtual se mostraram oito vezes mais propensos a ter praticado o auto-cyberbullying e aqueles que sofrem bullying na escola, entre quatro e cinco vezes mais.

Na publicação do estudo, Justin Patchin, do Cyberbullying Research Center [Centro de Pesquisa do Cyberbullying], comenta que alguns estudantes revelaram que as postagens reproduziam o que já havia sido dito ou postado sobre eles, de maneira privada. Segundo Patchin, um dos autores do estudo, "não sabemos o que veio primeiro, se ser vítima de cyberbullying o faz cometer automutilação digital ou se, como você pratica isso, faz com que outros também postem abusos contra você". "Mas sabemos que há uma relação", observa.

Na pesquisa TIC Kids On-line Brasil 2016, do CGI.br (Comitê Gestor da Internet no Brasil), 23% das crianças e adolescentes, entre 9 e 17 anos, já foram tratados de forma ofensiva na internet nos últimos 12 meses. Sobre o conteúdo ao qual tiveram acesso os participantes entre 11 e 17 anos, as formas de machucar a si mesmo foram citadas por 13% e formas de cometer suicídio, por 10%. Ao todo, foram realizadas 5.998 entrevistas, sendo quase metade com pais ou responsáveis e a outra metade, com crianças e adolescentes.

O fato é que tal prática pode ter uma extensão perigosa, expondo as vítimas a graves consequências até o suicídio. Por isso, é importante identificar esse sofrimento, descobrir as causas e tentar reverter esse quadro.

Esse é o recado do psicólogo Edson Luis Toledo, coordenador do grupo de automutilação do Programa de Transtornos do Impulso do IPq (Instituto de Psiquiatria) do Hospital das Clínicas da Fmusp (Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo). Ele é mestre em ciências e estuda a automutilação (autolesão não suicida) há cerca de oito anos.

O auto-cyberbullying é um fenômeno novo?
É novo e surgiu com a disseminação das plataformas de acesso à internet e das redes sociais. Eu diria que é uma característica do final do século 20. Mas diferente do meu foco de pesquisa que é a lesão física, o cyberbullying está relacionado à injúria, difamação, isto é, ao âmbito moral. Na minha opinião, há uma certa influência da mídia pelo fato de as pessoas terem acesso a múltiplos conteúdos, mas também há uma questão da vida moderna. Como vivemos no mundo do "Itudo", ou seja, do "eu, eu, eu", acho que pessoas, principalmente os adolescentes que estão em uma fase de desenvolvimento difícil, estão mais sujeitos a essas influências. Eles estão tendo que lidar com a aceitação, independência e cobranças sociais, mas muitos acabam não resistindo às pressões e cometendo o auto-cyberbullying como uma forma de dizer: "estou aqui".

Essa prática tem mais o objetivo de chamar atenção do que expressar um sofrimento?
Acho que em um primeiro momento é para chamar atenção, mas o sofrimento virá depois. É como aquela frase: "o tiro saiu pela culatra", porque a pessoa se expõe, dissemina uma informação e o bullying passa então a ser praticado por outros e não mais por ela mesma. O bullying cibernético já é um crime punível na legislação brasileira e tem tomado grandes proporções. Acho que tudo começou com o aplicativo árabe (Sarahah) que se popularizou pela possibilidade das pessoas falarem coisas positivas sobre outras. Isso viralizou, mas o que originalmente era tido como algo positivo, se tornou um espaço para falar verdades. Pelo que sei, foi a partir daí que se fomentou o cyberbullying.

Há alguma relação com a Síndrome de Münchhausen?
Essa síndrome é conhecida como transtorno factício, isto é, a pessoa acredita, se coloca e passa a se comportar como um doente, mesmo não sendo. Até encontrei na literatura algo relacionado a Münchhausen cyber, mas como é tudo muito novo, é preciso ter cuidado. Os estudos estão começando e é preciso analisar melhor antes de sair generalizando ou relacionando.

Cometer bullying virtual contra si mesmo pode levar à autoagressão física?
Pode, inclusive levando ao suicídio, pois a pessoa começa a ficar ou já está deprimida. É por isso que os casos envolvem principalmente os adolescentes, que estão em uma fase de vulnerabilidade psíquica. No ambulatório, temos tido muita procura por adolescentes (14 e 15 anos), que estão se autolesionando por meio de cortes, principalmente nos braços, abdômen e pernas. E não há diferença de gênero, isto é, vem sendo praticado tanto por meninos quanto por meninas.

Qual tem sido o motivo apontado pelos adolescentes para justificar as autolesões?
A baixa autoestima tem aparecido com frequência e também os novos arranjos familiares, que é um fenômeno que estamos vivendo e eles não estão conseguindo lidar com isso. Teoricamente, a premissa por trás da autolesão não suicida é não lidar com emoções, principalmente com a raiva. A adolescência é caracterizada por um turbilhão de emoções e, nesta fase, o indivíduo pode ter uma desregulação emocional e converter a forma de não lidar com isso em algo físico, visível, pois traz um certo alívio por mecanismos fisiológicos, como a liberação de endorfina. Então, psiquicamente a vítima faz um link entre se cortar e ter alívio.

A automutilação também pode ser incitada?
Os jovens estão buscando um modelo e, nessa busca, eles vão encontrando identificações. Existem bandas, por exemplo, que estimulam a autoagressão. O cantor Justin Bieber tem uma legião de fãs que se cortam por ele. Então, há uma série de situações contemporâneas que estão influenciando, relacionadas a um desejo de pertencimento. Mas que fique bem claro que muitos têm vulnerabilidades por questões familiares, baixa autoestima, depressão ou ansiedade, ou seja, têm um pano de fundo que facilita esse comportamento.

Que orientação o sr. dá aos pais e responsáveis para mudar essa realidade?
Buscar informação. Acho fundamental a psicoeducação, que é o ato de falar sobre o evento, sobre o fenômeno, não só com as vítimas, mas com pais, professores, cuidadores, até com os profissionais, pois muitos ainda desconhecem o tema. Quanto mais falar sobre o assunto, melhor. E os recursos estão aí. As universidades contam com clínicas psicológicas para atender quem não pode pagar por um acompanhamento particular, por exemplo.

A punição, como limitar ou proibir o acesso à internet, é um caminho?
Não. Você pode tirar o acesso e o seu filho ou filha buscará outros meios. O melhor caminho sempre é conversar e buscar entender o porquê de tudo isso. Todos esses comportamentos disfuncionais são um forma de pedir ajuda e que não podem ser desprezados, pois estudos apontam que a automutilação é a primeira fase para o suicídio. E o comportamento disfuncional pode ter como causa qualquer motivo, desde uma briga com o pai, um término de namoro, o fato de não ser convidado para uma festa, entre outros.