Imagem ilustrativa da imagem Atalho para o proselitismo?
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Na última semana de setembro, o voto de minerva da presidente do STF (Supremo Tribunal Federal), Carmen Lúcia, definiu que o ensino religioso nas escolas públicas pode ter natureza confessional, ou seja, as aulas podem seguir ensinamentos de uma religião específica. A votação apertada (seis votos a cinco) mostra que os ministros ficaram divididos sobre o tema principalmente no que tange ao papel da escola dentro de um Estado laico, conforme preconiza a Constituição Federal.

Pela decisão, a disciplina deve ser ofertada em caráter facultativo, dentro do horário normal de aula, e ficou autorizada também a contratação de representantes de religiões para ministrar aulas.

A socióloga, professora de antropologia da UFPR (Universidade Federal do Paraná) e doutora em antropologia pela Universidade de São Paulo Eva Scheliga é enfática ao afirmar que, com a adoção da perspectiva confessional, os estudantes perdem a possibilidade da pluralidade do debate, isto é, ficam privados de ampliar seus repertórios conceituais e de compreender a diversidade religiosa e cultural do Brasil e do mundo. Na entrevista a seguir, ela aprofunda a discussão sobre o papel da escola como espaço estratégico para garantia da cidadania.

A decisão do STF enfraquece o debate sobre a diversidade religiosa?
A decisão do STF pode enfraquecer, sim, o debate público sobre a diversidade - e não só sobre a diversidade religiosa. Sob o argumento da ampla defesa da livre manifestação de opinião, ou ainda do suposto combate à censura prévia a determinadas manifestações de concepções religiosas em sala de aula, alguns ministros acataram a velha máxima que diz que "religião não se discute". O raciocínio é o de que as aulas de ensino religioso aconfessional desrespeitam os alunos e suas famílias, obrigando-os a entrar em contato com ideias contrárias à sua crença. Como solução, sugerem que as aulas de ensino religioso sejam então ofertadas por especialistas na doutrina religiosa à qual os estudantes estão filiados. Sem dúvida esta é uma postura exclusivista, fechada à possibilidade de convívio com o diverso e que mais se assemelha à catequese, algo que não compete ao Estado promover.

Então a senhora corrobora com a tese defendida pelo ministro do STF Roberto Barroso em defesa da laicidade do Estado e sugerindo o ensino da história das religiões de maneira "neutra"?
Concordo integralmente com o princípio de que o Estado é laico. Isto significa reconhecer a necessidade de se respeitar e garantir o pleno exercício das diferenças - dentre elas, o respeito às diferentes manifestações religiosas, assim como a pluralidade étnica e a diversidade de gênero. O ensino religioso confessional ofertado na rede pública de ensino fere, portanto, este princípio básico.

Na prática, é possível defender o ensino confessional e ao mesmo tempo dar pluralidade ao debate?
As dificuldades de implementação do ensino religioso plural se devem à falta de diretrizes claras para esta disciplina escolar. Embora já se disponha de regulamentação para o ensino religioso, a ausência de diretrizes nacionais fixadas pelo Ministério da Educação, de modo a orientar as práticas pedagógicas relativas a esta disciplina, leva as equipes de educação a produzirem modelos próprios de ensino para este componente curricular. No Paraná, é bom notar que há um claro empenho em se respeitar a pluralidade religiosa. Em 2015, professores da rede estadual de ensino, em colaboração com a Associação Inter-religiosa de Educação (Assintec), elaboraram um material de apoio didático no qual esta perspectiva norteia todo o planejamento didático, de modo a proporcionar um ensino não proselitista. É, sem dúvida, um razoável avanço no projeto de defesa da pluralidade religiosa.

É possível conciliar a liberdade individual, a liberdade de crença e a opinião de que a escola tem o direito e o dever de transmitir valores às novas gerações?
Se assumimos que é papel do Estado garantir a defesa de direitos e, portanto, que é seu dever reconhecer a diversidade, passamos a entender a escola como espaço privilegiado para o debate a respeito das diferenças e das desigualdades. A escola é um lugar estratégico para a desnaturalização do mundo, sendo dever do Estado estimular e garantir a existência deste debate e o direito de todos de participar de modo isonômico desta discussão. O principal valor a ser transmitido neste projeto de educação laica é o da cidadania. Este valor envolve a compreensão e o respeito à diferença - e isto inclui o respeito aos diferentes modos de crer e de ser.

O ensino religioso poderá ser conduzido por voluntários de determinada religião. Qual sua avaliação?
A crença particular de um docente não o habilita automaticamente a ser professor de ensino religioso. Cabe lembrar que, por ocasião da regulamentação do ensino religioso, os voluntários foram vetados para se garantir aos estudantes do ensino básico que estes tenham pleno acesso a informações sobre distintas cosmologias religiosas. O que se temia era, justamente, que o ensino religioso, ao ser delegado a "profissionais da religião", se tornasse um veículo de proselitismo e discriminação, algo completamente alheio aos princípios de uma educação plural. No Rio de Janeiro, onde já vigora a modalidade do ensino religioso confessional em escolas públicas, são inúmeras as denúncias de casos de intolerância religiosa que afetam, sobretudo, discentes que se declaram ateus, agnósticos, candomblecistas ou umbandistas. O docente do ensino religioso precisa estar apto a tomar a religião como um fenômeno que se inter-relaciona com inúmeros outros e que deve, assim, ser sempre avaliado de modo contextualizado. Aqui no Paraná, estão habilitados a prestar concurso graduados dos cursos de licenciatura da área de humanas. O servidor público contratado para prestação do serviço está sujeito a uma série de constrangimentos institucionais que regulam seu trabalho: tanto por equipes técnicas quanto pelos pais. No caso do trabalho realizado por voluntários, o controle por parte dos pares e dos pais seria, sem dúvida, menor.

Apesar do ensino religioso ser facultativo, ele está na matriz curricular. Seria necessário uma revisão nessa base?
Ainda é cedo para saber como a decisão do STF será absorvida pelas equipes responsáveis pela elaboração da BNCC (Base Nacional Comum Curricular). Penso que, enquanto a disciplina de ensino religioso se inscreve em um projeto político de reconhecimento e defesa da diversidade cultural, é necessário seguir com o debate acerca da pertinência da disciplina enquanto componente curricular de oferta obrigatória e matrícula facultativa. Se a disciplina é pensada como um espaço de visibilidade das diferenças, pode fazer algum sentido mantê-la de modo a incitar uma reflexão a respeito da diversidade religiosa - ainda que esta discussão também possa, claro, ser realizada no âmbito de outras disciplinas escolares, como alegam os colegas pesquisadores vinculados ao Observatório da Laicidade da Educação (OLÉ). A partir do momento em que a disciplina de ensino religioso assume um propósito pedagógico difuso - como, por exemplo, ser apontada como uma disciplina capaz de incutir a solidariedade e o amor ao próximo como valores humanos, em uma espécie de revival da antiga disciplina moral e cívica - ou a partir do momento em que adquire um viés confessional, eu, particularmente, não vejo muito sentido para sua oferta regular como conteúdo obrigatório nas escolas públicas.

Qual o espaço ideal para transmissão de crenças, valores e espiritualidade: a escola, a família ou a igreja?
Na perspectiva das ciências sociais, não é possível definir, a priori, até onde vai o raio de atuação de cada uma das instituições. O ensino como um todo deve ser voltado ao pensamento reflexivo a respeito da diferença. Neste projeto, o ensino religioso, de modo particular, não se confunde, nem pode se confundir, com o exercício da espiritualidade. O objetivo do ensino religioso não é mostrar aos estudantes "qual religião seguir", ou ser uma forma de catequese ou escola bíblica. O intuito da disciplina escolar não é este. É, sim, levar o estudante à compreensão de que há modos variados de se explicar as dinâmicas que envolvem a natureza e a vida social (incluindo aí as explicações não teológicas a respeito da humanidade), relativizando o seu entendimento do mundo.

A senhora acredita que a decisão pelo ensino confessional abre brechas para outros debates, como a Escola Sem Partido?
Abre brechas, sem dúvida. O movimento Escola Sem Partido tem se mostrado combativo contra uma série de propostas que têm, em comum, o compromisso com a discussão a respeito da diversidade. Sob pretexto de combater aquilo que qualificam como resultado de uma "doutrinação à esquerda", os defensores do movimento assumem que normas de conduta e valores que lhes são particulares devem ser generalizados e aceitos como válidos por todos os demais membros da sociedade brasileira. Desta feita, a possibilidade de que as discussões a respeito da diversidade religiosa sejam preteridas a favor da prevalência de uma perspectiva concernente a grupos religiosos majoritários (no caso, notadamente grupos de matriz cristã) não pode ser descartada.

A decisão do STF, mesmo que sem intenção, poderá aumentar a força de parlamentares fundamentalistas que querem impor seus dogmas a toda a população em detrimento da laicidade estatal?
É realmente difícil prever as consequências da decisão do STF. É inegável que, nos últimos anos, um conjunto de atores religiosos - notadamente alguns agentes vinculados a igrejas pentecostais e neopentecostais - se articulou e obteve êxito tanto na aprovação de projetos considerados conservadores quanto no arquivamento ou atraso na aprovação de projetos considerados progressistas. Este grupo, contudo, não pode ser tomado como um bloco homogêneo e coeso, e muito menos pode ser considerado representativo do que pensam as inúmeras e reconhecidas lideranças religiosas e, sobretudo, de como pensam os fiéis. Em outros termos, o que pretendo sugerir é alguma cautela na avaliação do alcance das ações destes parlamentares. Particularmente, acho mais produtivo voltar nossos olhos para o embate em torno dos direitos sociais fundamentais que se vê nas margens do Estado, onde as tratativas em torno da diferença são muito mais dinâmicas e complexas.