A sexualidade feminina foi assenhoreada pelos homens, que se sentiam possuidores do direito de decidir a forma como as mulheres se vestiam e se relacionavam. A consequência dessa intromissão na existência feminina, incluindo a sexualidade, provocou efeito perverso na responsabilização dos culpados nos crimes contra a dignidade sexual feminina perante a sociedade, que, por um lado, é benevolente com o agressor masculino e, por outro, estigmatiza a vítima feminina.

Até recentemente, o crime de estupro, em regra, era perseguido por meio de ação privada, na qual, a vítima deveria arcar com as custas do processo contra o agressor. O Estado era indiferente à dor da vítima, que ficava desamparada, sem apoio jurídico e médico. A legislação avançou e passou a prever que a ação em crimes contra a dignidade sexual, em regra, é pública incondicionada. Embora haja avanços na legislação, é certo que a sociedade nutre empatia pelo agressor e culpa a vítima.

As vítimas de crimes sexuais são julgadas e condenadas pela sociedade sob o argumento de que contribuíram para a agressão, seja por estarem com uma determinada roupa, seja pelo horário que estavam na rua ou por terem ingerido bebida alcoólica. É fato que a condição social feminina impôs às mulheres o medo constante de serem vítimas de crimes sexuais. Não há mulher que nunca sentiu pânico por estar sozinha à noite numa rua deserta ou de pegar táxi com motorista homem.

É de conhecimento público que um jogador de futebol brasileiro foi condenado pela Justiça espanhola por estupro de uma mulher. No dia que a sentença foi proferida, a vítima, ao saber que seu agressor foi declarado culpado, chorou e repetidamente disse ‘acreditaram em mim’. Este é o temor enfrentado pelas mulheres vítimas de crime sexual, serem desacreditadas, e depois do sofrimento inerente ao processo criminal, verem o agressor livre.

Para conseguir redução de pena, o jogador pagou multa que foi revertida à vítima como reparação de danos, naquela ocasião, o réu contou com o apoio de um jogador brasileiro para custear o pagamento. Após a sentença que declarou que a vítima sofreu agressão sexual e não consensual, como quis fazer crer o autor, foi-lhe concedido o direito à liberdade, mediante fiança de um milhão de euros.

Noticiou-se que o mesmo amigo será acionado para viabilizar o pagamento da fiança. O amigo pareceu não se incomodar em ver seu nome associado a odioso crime, certamente por acreditar que a sociedade é condescendente com homens que praticam crimes contra mulheres. Em um mundo pautado em valores de solidariedade e justiça, laços de amizade com um condenado por estupro causaria, no mínimo, constrangimento e afastamento.

A conclusão que se chega é que o crime compensa, sobretudo, quando as vítimas são minorias ou maiorias minorizadas. E se o autor do crime é rico, famoso e conta com uma rede de apoio financeiro, a condenação não terá a capacidade de causar maiores prejuízos à sua imagem, dada a tolerância com que homens são tratados.

Além da necessária condenação na Justiça, é fundamental a reflexão sobre a gravidade do crime de estupro e sobre os fatores que causam essa violência sistemática contra mulheres. O sentimento de dominação e a objetificação do corpo das mulheres são fatores decisivos para criação de uma sociedade hostil às mulheres. A superação desse flagelo social passa pela construção de condições para exercício pleno da autonomia feminina, incluindo, necessariamente, a independência financeira e a igualdade de tratamento. A construção de uma sociedade que acolhe e respeita as mulheres exige uma ressignificação do papel de todos na sociedade.

O patriarcado criou um ambiente tóxico de relações, no qual o comportamento é o de dominação e coerção, e o indivíduo mais forte socialmente, o homem, coage e submete o mais fraco, a mulher. Esse padrão cria um ambiente de exploração e opressão sexista e tolhe mulheres e homens de experiências incríveis de afeto, empatia e cooperação mútua. O que meninas e mulheres desejam é viver num mundo com justiça de gênero, com o direito inarredável de viverem livres, sem medo, e em igualdade de oportunidades.

O sentimento de respeito aos corpos femininos precisa passar a ser visto como a maior prova de masculinidade, a boa e benéfica masculinidade, porque o masculino e o feminino não rivalizam.

Ana Vanessa Fernandes Bezerra é associada da Associação Paranaense do Ministério Público e promotora de Justiça do Paraná.

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