Paris- A história de vida e sucesso de Cléa de Oliveira na capital francesa não tem qualquer precedente. Carioca, nascida nos anos que lá se foram, como ela mesma divertidamente fala, Cléa começou sua vida com um objetivo completamente diferente daquele que acabou vivendo. Criada pela mãe, uma grande costureira da alta burguesia do Rio de Janeiro, junto com mais três irmãos, começou cedo a estudar. Formou-se em contabilidade ''mas não vá me pedir para fazer contabilidade que eu não sei''. Fez pós-graduação em economia e acabou prestando concurso para o Tribunal de Justiça. Foi aprovada, trabalhou por dez anos lá, e, de repente, voilá, veio a chance de se inscrever para uma bolsa de estudos em Paris. A princípio seria somente um ano, na verdade Cléa queria ficar somente seis meses. Não se imaginava longe da realidade que vivia.
''Na época era impossível imaginar que você podia viver em outra cidade que não fosse o Rio de Janeiro. O Rio era maravilhoso. Ninguém gostava, principalmente entre os meus amigos, nem de ir para fora no final de semana. Morar longe então? Um sacrilégio''. Mas mesmo assim ela veio. ''Tive a resposta rápida desde quando me inscrevi. Minha saída foi para estudar. Tinha aquelas coisas: como que a gente vai fazer para comer sem feijão? E a comida em restaurante universitário era um horror. Então essa angústia tinha''.
Mas a chegada de Cléa já foi boa. Ela foi morar na Place Saint Michel. Com todo o auxílio necessário de uma bolsista e ainda um salário brasileiro. ''Fiquei deslumbrada. A minha primeira impressão foi de admiração. Achei a cidade maravilhosa. Isso era setembro de 1967. As aulas escolares ainda não tinham começado. Foi quando veio a primeira surpresa. Nada de iniciarem as aulas. Eclodiu uma greve geral. Aconteceu que no ano seguinte, maio de 1968, teve a revolta dos estudantes. Esse movimento contagioso se espalhou pelo mundo todo. Ele saiu como um rastro de foguete e foi invadindo todas as capitais e eu tive que pedir mais um ano de licença''. Com esse dedinho do destino, o período pequeno de seis meses acabou se estendendo por dois anos. E foi aí que tudo se consolidou astralmente pelo menos. Em suas saídas durante a greve, Cléa conheceu Guy, um publicitário francês.
Final de 69. Termina o período de licença e ela volta ao Brasil. Seis meses depois, Guy foi buscá-la com uma proposta consolidada: abrirem um restaurante brasileiro em Paris. Cléa que não gostava de insegurança foi pega pela curiosidade do famoso ''quem não arrisca não petisca''. E foi assim que arriscou. Largou as apostilas de estudo de economia, que pretendia aprofundar como carreira na época, e veio de navio para cá. ''A embarcação fazia parte de uma companhia brasileira que tinha uma frota de três navios. Parecia a Santa Maria, Pinta e Nina, brinca. Era um navio que ia do Rio para Salvador, Recife, Ilha da Madeira e depois Lisboa. Essa foi a última viagem do navio e Cléa desembarcou em Portugal com 600 quilos de bagagem para abrir o restaurante. Até as panelas para feijoada, que viria a ser o maior sucesso de Paris durante 23 anos, ela trouxe. A chegada foi interessante. O Brasil estava em plena Copa do Mundo de 1970, quando ela chegou. Um presságio de que sua estadia seria um sucesso.
O Chez Guy abriu as portas logo na Rue Mabillon, em Saint Germain, um lugar badalado da cidade. Começa então a vida de restauratrice. Cléa não tinha se preparado para isso. Mas o sucesso foi instantâneo. ''Não tinha uma semana que não saísse um artigo sobre nós. De cara, os críticos franceses de gastronomia caíram de amores pelo lugar. E foi com o conselho de um deles que a feijoada começou a ser servida todo dia. E a coisa ferveu. Música brasileira gravada todos os dias. Mas no sábado, o bicho pegava. O som era ao vivo e todo mundo começou a frequentar o Chez Guy. Quando se fala em todo mundo em Paris da época era todo mundo mesmo. Difícil dizer quem não foi. Eu posso te dizer que o Alain Delon não foi, mas a Brigitte Bardot foi. Até políticos. Mitterrand comendo feijoada no meio do samba. A princesa de Mônaco, a rainha da Suécia. E toda brasileirada. Vinicius de Moraes, Tom Jobim, Baden Powel. Este tinha no restaurante sua casa. Ele dizia assim: Cléinha eu não vim para tocar eu vim para te acompanhar. Imagina só. Ele pegava o violão e não queria nem saber. Às vezes, a gente queria preparar o restaurante para a noite e ele continuava tocando''.
O sucesso do Chez Guy durou muito. Reportagens o tempo todo. Celebridades que frequentavam o restaurante eram inúmeras. Cléa tem fotos ao lado de Marcelo Mastroianni, Ray Charles, Pelé, Bethânia, Djavan, Milton. Como ela mesma diz, fica difícil dizer quem foi, melhor dizer quem não foi. As modelos da agência de John Casablancas, a Elite, viviam lá. Di Cavalcanti fez um desenho num guardanapo que Guy transformou em cartão-postal. Jorge Amado, que era também vizinho do prédio, onde o casal mora à margem do Sena, também ia.
As historias são incríveis. ''Uma vez, a Simone de Beauvoir estava lá, jantando. E entra a Françoise Sagan com uma banda de oito jovens. E Simone chamou o Guy e disse: 'Monsieur, ce bien ça marche vous avez Sagan ce soir'''. A frase demonstra que as pessoas importantes que lá iam também se admiravam com a frequência de outras celebridades tão importantes quanto elas. Para quem não sabe, Sagan foi uma grande romancista francesa. Autora de Bom dia Tristeza, uma obra famosa no mundo inteiro. E Simone de Beauvoir? Bem, apesar de dispensar apresentações aí vai: era mulher do filósofo Jean Paul Sartre e também escritora e feminista. Dois ícones da literatura não só francesa, mas mundial.
Em meio a tudo isso, Cléa cantava também. Sempre gostou de cantar. Ela dava canjas junto com os músicos da casa. Mas nunca se considerou cantora. Diz até hoje que não é. ''Comecei só cantando lá, mas nunca entrei realmente com os dois pés não''. Mesmo assim, ela fez muito sucesso. Começaram a aparecer convites para cantar em vários lugares. Fez concertos em clubes parisienses, se apresentou em um canal de tevê durante o Festival de Cannes, em 85. Era chamada, mas nunca se interessou por gravar nada. Eu não existia fora do Chez Guy. Sair por aí de cantora, agora eu posso, mas também com muita distância. Porque quando tem alguma coisa interessante eu faço, agora o sofrimento que vejo em minhas amigas cantoras, isso eu não quero para mim. Com isso ela vive o lado bom de quem gosta de cantar. ''Eu não sou cantora, eu canto'', diz categórica, podendo se dar ao luxo de ter feito um sucesso estrondoso em Paris e mesmo assim se manter fora do deslumbramento.
Hoje Cléa e Guy vivem em clima de não ter saudade do tempo que passou. Na sacada de casa, ela fala que pensa e sente hoje pelo Chez Guy o que Vinicius disse em seu Soneto da Fidelidade. ''Penso em Vinicius e seu poema que não seja eterno o posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure''. Sinto saudade só do povo que frequentava. Agora, do trabalho do restaurante, não. Aí eu volto ao Vinicius a vida é a arte do encontro. Eu nunca teria encontrado as pessoas que encontrei se não tivesse o restaurante. Nunca teria conhecido um Vinicius, o Di Cavalcanti, quando que meus caminhos iam cruzar com eles? Eu teria outros relacionamentos se tivesse seguido carreira de economia, mas esse métier da badalação é que é o bom''.

‘‘De cara, os críticos franceses de gastronomia caíram de amores pelo lugar. E foi com o conselho de um deles que a feijoada começou a ser servida todo dia. E a coisa ferveu’’, lembra Cléa, na sacada à margem do Sena