‘’Quando foi que, para estar vivo, não precisou de licença?’’ rima a multiartista Luli MC em ‘Manifesto de Consciência’, canção que integra seu primeiro álbum "Pede Agô", lançado na última semana. A frase tem conexão direta com o título do projeto, onde o termo iorubá ‘’Agô’’, representa o ato de pedir licença ou permissão.

Em dez faixas dispostas entre os gêneros drill, trap e afrobeat, Luli versa sobre ancestralidade, luta antirracista e as vivências no cotidiano de uma jovem negra moderna. ‘’Pede Agô’’ está disponível em todas as plataformas digitais.

Um dos principais elementos que conduz o rap é a batida. No álbum de Luli, o responsável pelos beats é o Dj Samu aka Suguiura, grande nome do cenário londrinense. ‘’Tem muito de ouvir a batida e entender do que é possível falar no som, mas também já tenho definidas as coisas que quero pautar’’, comenta a artista.

Essa curadoria durou dois meses e só depois Luli começou o processo de composição: para os beats de drill, vertente mais densa, o mote são questões de raça; para o trap, gênero mais fluído, o estilo de vida voltado para o público feminino; e com os afrobeats estão os temas ligados à ansiedade e depressão.

Em ‘’Dandara: A Força’’, música que introduz o projeto, Luli reflete sobre a conexão com a ancestralidade para se reerguer. ‘’Escrevi em um momento em que estava bem pra baixo, então foi importante ‘virar a chave’ e pensar que ‘você só consegue impulso se estiver com os pés no chão, e às vezes, o único chão disponível é o fundo do poço’’, explica sobre a composição que cita Dandara e Zumbi dos Palmares, marcos de resistência no período escravocrata. ‘’É necessário se conectar com a sua espiritualidade, com seus sonhos e seus desejos’’, completa.

UMA CAMPEÃ DE DESAFIOS


A experiência nas batalhas de rima de Londrina integram as composições da artista, que também é MC, campeã de inúmeros desafios pela cidade e conhecida nas redes pelas rimas virais e vídeos engraçados sobre este universo. Mas no circuito de batalhas, ser mulher e MC é outro desafio. Em ‘’Coleira Cravejada, Pt.2’’ os versos vão de encontro à necessidade e valorização da amizade com outras mulheres. ‘’É sobre nós mulheres

vivendo nossa vida com liberdade, é a necessidade de ter uma matilha para correr por mim’’, comenta a artista, que faz referência ao verso ‘’Eu não sou Mun-Rá, mas tenho sim meus pitbull por mim’’ do rapper Sabotage, assassinado em 2003.

‘’Nós MCs acabamos nos envolvendo [romanticamente] e nos relacionando uns com os outros, e tem muito MC folgado na cena!’’, explica sobre ‘’Louca Surtada’’, faixa que é uma espécie de diss, nome dado às ‘’tretas’’ musicais no rap. ‘’Essa música foi feita para os piá (sic.) que tem coragem de escrever letras te xingando, e que mesmo sem ter o nome você sabe que é direcionado a você, mas não tem coragem de pagar o pix que está te devendo’’, debocha nas redes sociais, expondo a perspectiva que é confirmada nos comentários por outras mulheres que frequentam as batalhas da cidade.

Essa mescla de deboche e humor já foi apresentada anteriormente pela artista em ‘’White List’’, música lançada no ano passado tratando a solidão da mulher negra nas relações afetivas. À época, ela comentou a necessidade de se empoderar, empoderar as mulheres para ‘’perceber as estratégias e ciladas mas não cair nelas’’.

O projeto ainda conta com duas participações: ‘’Rap Game’’ com o grupo londrinense da zona leste Etnia Rap, composto por Renan Felix e Adilson Dias, este campeão paranaense de rimas em 2023; e ‘’Flores pra Te Receber’’ com Nego Petrus, rapper do Capão Redondo, bairro paulista que é berço de Mano Brown e Ice Blue do Racionais MCs.

UM ÁLBUM DE COLAGENS

‘’Pede Agô’’ é um álbum feito à muitas mãos, aspecto representado nas colagens que ilustram a capa. Entre produção musical, design, fotografia, cabelo, maquiagem e figurino, são oito pessoas que ajudaram na construção da obra que é ancestral e moderna ao mesmo tempo. Com a sensibilidade de uma jovem que tem o desejo de conquistar o mundo e a humildade de saber de onde vem, Luli pede licença, e quem a escuta, concede.

‘’É um sinal de respeito: abaixo a minha cabeça e peço Agô, peço licença para chegar, concedo licença para quem chegar, peço licença para a espiritualidade para deixar a minha marca, fazer minha arte’’, finaliza.

VÁRIAS FACES DE UMA SÓ ARTISTA

Luli também ocupa outros tipos de palcos. Ela é atriz e bacharela em Artes Cênicas pela Universidade Estadual de Londrina, produtora cultural e roteirista. De 2018 a 2021, Luli integrou o Núcleo Ás de Paus, circulando por festivais e prêmios, no Circuito Sesi Paraná, Circulação de Espetáculos pelo Promic - Programa Municipal de Incentivo à Cultura e muitos outros.

Durante sua passagem pelo Núcleo, foi uma das idealizadoras da websérie de contação de histórias ‘’Munditos’’, lançado em 2020, onde compôs canções, roteirizou histórias e, claro, atuou. Em 2022 fez parte do elenco de ‘’O Céu Sobre Londrina" dirigido por Adriano Garib, o média-metragem que narra a trajetória de dois anjos que aterrissam na cidade durante a pandemia de covid-19.

Luli ocupa vários tipos de palcos, além de rapper, ela já fez cinema e teatro
Luli ocupa vários tipos de palcos, além de rapper, ela já fez cinema e teatro | Foto: Jullyus Pierre/ Divulgação

UMA MULHER NAS BATALHAS

Quando o movimento Hip Hop chega ao Brasil em meados dos anos 80 ele começa, predominantemente, como um ambiente masculino. O uso da palavra ‘’predominante’’ não é para fugir da generalização e sim para salientar que, ali, já existiam mulheres dispostas a conseguir seu espaço.

Um exemplo claro é a rapper Sharylaine, considerada a pioneira no universo do rap feminino em São Paulo: é possível que você nunca tenha escutado esse nome, mas ela já estava lá no LP "Consciência Black", de 1988, produção que lançou o Racionais MCs com a música ‘Pânico na Zona Sul’. Mais do que ocupar lugares, desde o início do movimento, as mulheres precisavam lutar também contra a invisibilização.

Por aqui, a FOLHA acompanha a história do rap em Londrina desde seus primeiros passos. Em 2005, o jornalista Nelson Sato discorreu sobre as mulheres pé-vermelho que começavam a somar no movimento: Ritinha Potira, o grupo Realidade Ativa, Triagem, Raciocínio de Idéias (quando a palavra ainda carregava acento), Ideologia Rap, entre outros coletivos e vozes que começavam a se apossar do ritmo e poesia para expor não só a realidade da periferia, como também as vivências de mulheres que lá vivem.

Mesmo com a coragem de usar a voz e a música como arma, existia a barreira do rap ‘’de mulher’’. Passadas duas décadas, tudo mudou e nada mudou. A presença feminina no rap é maior, mas as oportunidades se mantêm desiguais. Ainda assim, cada vez mais portas são abertas por elas, para que outras possam não só passar, mas fincar os pés em um solo onde por muito tempo, foi comandado por homens. Elas se fazem presentes, e não só rimando ou cantando: as mulheres estão cada vez mais envolvidas no ecossistema do rap. Em Londrina, a Batalha da Leste, uma das mais populares, tem como uma das organizadoras a jovem Rebeca Galdino. A Batalha da Máfia é organizada por quatro mulheres. O coletivo de comunicação Noiz Londrina é comandado por três mulheres. As mulheres estão nos eventos. Na gerência de redes sociais. Na fotografia. Na produção. No design. Nos palcos. Nos bastidores. No corre. E no principal: na luta por mais protagonismo, pois ainda não é suficiente.

Imagem ilustrativa da imagem Rapper Luli MC mescla o ancestral e o moderno em ‘’Pede Agô’’
| Foto: Divulgação