Obras da exposição  "Queermuseu – cartografias da diferença na América latina", encerrada sob pressão no último domingo
Obras da exposição "Queermuseu – cartografias da diferença na América latina", encerrada sob pressão no último domingo | Foto: Reprodução



Um atentado à liberdade de expressão artística no Brasil, nesta fase de celeuma e posicionamentos políticos acirrados, ocorreu no último domingo (10), em Porto Alegre, depois que um grande banco encerrou a mostra "Queermuseu – cartografias da diferença na América Latina" após protestos de grupos conservadores que consideraram a exposição imprópria alegando blasfêmia, atentado ao pudor, desrespeito a crenças e outras caracterizações de desagrado. A mostra que trazia obras que contemplam períodos importantes da História da Arte do Brasil e da América Latina, de Pedro Américo a Flávio de Carvalho, passando por Portinari e Lygia Clark, tinha como tema a diversidade da expressão de gênero e do universo LGBT. Um crítico especializado ou um cidadão comum podem não gostar ou criticar uma obra de arte, alegar um esvaziamento de sua proposta ou construção, discordar de seu conteúdo, sua forma, seu meios ou suportes, agora o que não se pode é promover censura levando em conta ranços e preconceitos socioculturais, de caráter moral ou mesmo religioso.
Consta que durante dias pessoas ligadas a movimentos sociais conservadores policiaram e incomodaram espectadores da mostra a ponto de seguranças do local serem obrigados a intervir. Parece que essas forças que se reúnem sob um viés moralista querem comandar o gosto, o apreço e em, em última instância, a escolha pessoal de um indivíduo de visitar esta ou aquela exposição, assistir a este ou aquele filme, escolher este ou aquele espetáculo de teatro, ler ou não um livro. Este tipo de censura corporativa, que passa hoje até pelo corpo a corpo, tem ressurgido em ambientes culturais com a intenção clara de intimidar seus públicos. Quando essa intimidação passa a funcionar como mecanismo de censura acende-se a luz do risco de sucumbirmos novamente a um estado de coisas em que uma parte da população censora sai do armário, mostrando que ainda não nos curamos de atitudes nefastas de controle que revelam no cerne o autoritarismo.

A arte tem um caráter simbólico, pode ou não refletir a realidade em suas nuances, impasses, conflitos e configurações, mas não representa nenhuma ameaça à liberdade individual e coletiva, ao contrário de ações políticas dos que desejam claramente controlar – como neste caso - a divulgação,reprodução, fruição e, o mais grave, a criação artística. Ao censurar uma obra, o desejo dos censores é aplicar limites segundo a sua concepção de educação, crença e cultura. E a censura pública se liga a mecanismos subjetivos da censura privada reproduzindo a proibição familiar, social e cultural daquilo que incomoda. Mas uma das propostas da arte é justamente incomodar, levar a refletir, fazer pensar. A arte não precisa de um pai censor, ela se processa conforme demandas culturais, e a contemporaneidade requer liberdade até mesmo para curar suas feridas históricas.
Na mostra que foi fechada em Porto Alegre, uma obra que chamava a atenção era a de um Cristo de muitos braços cujas mãos carregavam objetos diversos: de um revólver a uma luva de boxe. Blasfêmia? Desrespeito? No meu ponto de vista não, nada mais significativo do que um Cristo contemporâneo que é crucificado carregando os males presentes na sociedade altamente violenta que criamos, indo das guerras ao confronto que desenvolveu uma carnificina nas periferias das grandes cidades.
No quesito erotismo, amplamente criticado pelos censores de plantão, cabe observar que ele está presente desde a arte das cavernas com imagens de pessoas e animais acasalando. Apresentando ainda formas de perversão como a zoofilia, em murais indianos do século XII, e cenas de "prostituição sacra" ligadas a ritos de fertilidade de séculos anteriores em sociedades primitivas.

Repito: se alguma crítica deve ser feita a uma obra de arte que se usem os critérios apropriados e eles não passam pela censura. Proibir não significa eliminar uma ideia ou um comportamento, mas apenas sua expressão simbólica. Censurar apenas demonstra poder por um crivo autoritário. Depois de Sófocles, com Édipo (427 a.C.), da Bíblia, com a reprodução dos costumes de um período que inclui a permissividade masculina sob diversos ângulos, depois da arte profana do francês Felix Labisse e suas telas com santos em êxtase erótico, depois do cinema contemporâneo, que inclui Pasolini com seu polêmico "Teorema" e o desregrado "Saló", proibir uma exposição de artes plásticas que tem como tema a diversidade parece, no mínimo, obsoleto. Sem contar que incestos, pedofilia e outros temas considerados indigestos fazem parte de séries assistidas por milhares de espectadores que guardam atrás do sofá seu choque e sua vergonha acompanhando avidamente os episódios de "Games of Thrones". Censura de ocasião só torna impróprio nosso discernimento sobre as coisas, incluindo a arte.