A vida de Saroo Brierley é uma dessas vidas dignas de serem contadas. Oito anos depois de "Slumdog Millionaire: Quem Quer ser um Milionário", melhor filme 2008 (e mais sete estatuetas), outro filme ambientado em boa parte da Índia e protagonizado pelo mesmo Dev Patel se habilita a ganhar seis prêmios Oscar no próximo domingo (26). Não vai levar a maioria deles, inclusive o principal. Mas homologa a inclinação da Academia por relatos regidos pela correção política, discursos sobre a culpa e certa manipulação emocional. "Lion – Uma Jornada para Casa" é um dos três que faltam para o circuito londrinense atualizar a lista dos nove nominados a melhor filme. Não está à altura dos demais concorrentes como obra pensada e bem pesada, mas ainda assim o resultado é suficientemente eficaz para não irritar os cínicos que questionam certo tipo de história com mensagem e para emocionar aqueles que colocam o coração acima do intelecto na hora de desfrutar um filme.

Diretor estreante, o australiano Garth Davis reconstrói a trajetória verídica de Saroo (na infância, interpretado por Sunny Pawar), menino de 5 anos que, sem querer, se perde na extensa e caótica malha ferroviária da Ìndia. Por engano a bordo de um trem sem passageiros, ele é levado de seu povoado rural até as sórdidas ruas de Calcutá, a 1.500 quilômetros de distância. O ano é 1986, e o garoto está absolutamente só, sem contato com sua mãe solteira e seu irmão mais velho. Depois de se safar de ameaças diversas, entre elas uma rede de pedofilia, e passar algum tempo numa espécie de orfanato, Saroo acaba sendo adotado por um casal australiano (David Wenham e Nicole Kidman).

Na segunda parte, após um salto cronológico, o personagem é interpretado por Dev Patel, australiano de origem hindu prestes a entrar nos trinta. Resolvido em termos da nova família que o acolheu e adotou, no entanto ele é assombrado por lembranças da infância, de sua família biológica, sobretudo de seu irmão Guddu, que cuidava dele como se fosse um pai. Saroo tenta então localizar seus laços de sangue, apelando não apenas para sua débil memória infantil (tomando como referência as poucas recordações), mas também lançando mão da sofisticada ferramenta do Google Earth. Paradoxo: apesar da tecnologia de ponta utilizada por ele, é nessa segunda parte que "Lion" - o motivo do título original é uma surpresa, somente explicada bem ao final - se torna mais convencional, repetitivo, mais manipulador emocionalmente ao colocar um discurso-reflexão sobre família, adoção (aqui, Nicole Kidman recupera seus melhores momentos como atriz dramática, leia-se "As Horas", "Dogville", "Os Outros", "De Olhos Bem Fechados", "Cold Mountain", "Retrato de Uma Mulher"), origens e identidade. É evidente que o filme aqui resvala para o convencional, tanto em fundo como em forma.

Mas atenção para a primeira metade, que dura cerca de 50 minutos. Em poucas palavras, e através de imagens poderosas e enfoque de docudrama com toques poéticos e tintas de denúncia social, surge a odisseia do pequeno e indefeso Saroo, perdido, deambulando entre perigos e misérias da cidade grande, violenta e impiedosa. Nessa parte o relato é absolutamente verossímil porque extremamente cru, sem que seja preciso recriar o drama, já que a extrema naturalidade do garotinho Sunny Pawar toma conta da narrativa. Apenas se utiliza a música (elegante e grave, de Volker Bertelmann) e a fotografia naturalista de Greig Fraser para reforçar as emoções, os ruídos urbanos, o trem, as pessoas, a solidão, os silêncios...A ambientação é a dos subúrbios de Khandwa e Calcutá. E bem à maneira das descrições de Dickens, o que se obtém nesta parte inicial é um relato carregado de humanidade e sentimentos de verdade, não manipulados, um raio X da miséria, um retrato que outorga vitalidade e credibilidade à esta história baseada em "A Longa Estrada para Casa", autobiografia do próprio Saroo Brierley.

Dev Patel, candidato ao Oscar de coadjuvante, apesar de oferecer atuação esforçada e sensível, tem seu trabalho eclipsado pela minimalista e preciosa presença do menino Saroo/Sunny Pawar. O desenlace previsível de "Lion" consegue se livrar das armadilhas emotivas tão caras ao perfil "vale de lágrimas" televisivo – filho reencontra mãe que não via há décadas – e consegue manter sua aura inspiradora.

Um filme a ser visto e respeitado. Na cerimônia de domingo, vale conferir no palco o pequeno ator hindu. O garoto tem carisma.