A literatura de Sidney Rocha une densidade e concisão, em poucos parágrafos seus contos conseguem sugerir uma história completa
A literatura de Sidney Rocha une densidade e concisão, em poucos parágrafos seus contos conseguem sugerir uma história completa | Foto: João Miguel/ Divulgação



A morte nem sempre chega na forma de algo surpreendente, como uma suntuosa apoteose do fim. Em algumas situações ela chega como um resumo da vida, como uma proposta onírica da existência. Em outras palavras, a morte pode ser encarada como um resumo histórico.

Em seu novo livro de contos, "Guerra de Ninguém", o escritor cearense Sidney Rocha apresenta narrativas em que a morte se revela como síntese histórica da existência humana. O fim como uma espécie de ímã que atrai para si todo tipo de sentido espalhado ao longo de uma vida.

Lançado pela editora Iluminuras, a obra reúne 22 contos que eliminam fronteiras temporais e geográficas. Séculos distintos trafegam numa mesma confluência em instantes. Personagens reais e históricos se misturam com figuras comuns e ficcionais.

Uma das principais características da literatura de Sidney Rocha está em unir densidade e concisão. Em poucos parágrafos seus contos conseguem sugerir uma história completa, focalizando apenas os episódios grávidos de significados.

O conto "Os Nehemy", por exemplo, traz a histórias de dois irmãos em conflito com o pai, um velho imigrante libanês. Os irmãos sentem pavor toda vez que o pai, com o talão de cheque nas mãos, chama os dois para uma conversam. Há sempre o fantasma que o velho fará um cheque para que um deles seja deserdado da família.

No conto "A Mãe de Seu Menino", uma mãe se consome pela culpa de perder o filho durante um rotineiro passeio no parque. Atormentada pela ideia de que ninguém sabe o que é perder um filho até realmente perdê-lo, executa a seguinte prece: "Nunca me perdoe, filho, não torne isso mais injusto e insuportável do que é".

O conto "Alva" traz a história da execução do frei Joaquim do Amor Divino. Condenado à forca pelas autoridades, todos os carrascos se recusam a participar de sua morte. A solução encontrada é nomear um pelotão do exército para fuzilá-lo. E um segundo pelotão para executar o primeiro em caso de desobediência. E ainda um terceiro pelotão para executar o segundo pelotão em caso de uma segunda desobediência. E um quarto pelotão para eliminar a dúvida.

Nas narrativas de "Guerra de Ninguém" a morte não aparece como redenção, nem como fatalidade do destino. Ela é muito mais o sonho de homens diante de uma guerra invisível. E a descrição desse sonho pode aparecer no meio do campo de batalha com as seguintes palavras: "Os pés tinham cachos de calos e ele usava a ponta da espada para se livrar das bolhas. Não se aventurava a tirar as botas, então a lâmina atravessava o couro e depois ele sentia o alívio da flor explodir em orvalhos e ensopar dos dedos ao calcanhar."

Sidney Rocha nasceu em Juazeiro do Norte, Ceará, em 1965. É autor de três volumes de contos, "Matriuska" (2009), "Sofia" (2014) e "O Destino das Metáforas" (2011), obra que recebeu o prêmio Jabuti 2012 de melhor livro de contos. Seu primeiro romance, "Fernanflor", foi publicado pela editora Iluminuras em 2015.

Imagem ilustrativa da imagem LEITURA - Histórias de um lugar sem volta



Serviço:
"Guerra de Ninguém"
Autor – Sidney Rocha
Editora – Iluminuras
Páginas – 120
Quanto – R$ 38

Depois de anunciada a doença, os amigos passaram a tê-lo como a quem tudo se permitisse, um ex-detento ainda sob a fiança dos primeiros dias de sol rasgando as montanhas, uma criança de algum tipo mais manso, aqueles de boa vontade, herdeiros da terra. Ele dera as costas para todos esses arrebatamentos e à noite, depois de colocar sua cavalaria vermelha para lutar contra o monstro até vomitar na pia do quarto, dormia com a arma ao lado, chamando os anjos, dizia. Uma tarde qualquer, o carteiro entregou o envelope de demissão, e o velho assinou uma papeleta amarela. Deixou o documento vagabundeando sobre a mesa. Ainda hoje o papel flutua pela casa, é comum vê-lo pelos cômodos, dia desses o vi se debater contra a cortina da sala. Quando o recebeu, Nabih não ritualizou nada. Dirigiu o carro por ali, foi até o banco, conversou lorotas com uns amigos e voltou para casa com os olhos injetados de vento, os cabelos eram palha de milho grudados no crânio, o hálito de peixe, a respiração precisando de maestro. Era ainda o homem que me ensinou sobre como se livrar das garras de um urso ou descobrir se o crupiê está roubando ou não na roleta. Não há ursos do lado de cá, todos sabem, e como todos me conhecem: não sou do tipo de otário que vai a Vegas. O velho me fez um grande favor em me ensinar só aquilo dos almanaques e de "Seleções", do Reader’s Digest. (Fragmento do conto "Os Nehemy" que integra "Guerra de Ninguém, de Sidney Rocha)