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| Foto: Reprodução


Completamente incompreendido em sua época, o escritor Lima Barreto (1881-1922) vem ganhando cada vez mais visibilidade na literatura brasileira. Sua obra começa a ser lida com novos olhos e receber novas análises.
Lima Barreto é grande homenageado da Festa Literária Internacional de Paraty, a FLIP de 2017. O evento tem início na próxima quarta-feira, dia 26, com uma mesa sobre o escritor com a presença da historiadora Lilia Moritz Schwarcz e do ator Lázaro Ramos. Lançamentos de reedições de algumas de suas obras também integram as homenagens.

O destaque fica por conta do lançamento de "Lima Barreto – Triste Visionário", biografia de autoria da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz. Fruto de mais de dez anos de pesquisa, o livro oferece uma leitura contemporânea da vida e da obra do autor de "O Triste Fim de Policarpo Quaresma" (1911).

A vantagem de Lilia Schwarcz, em sua pesquisa, foi ter acesso irrestrito ao acervo documental do ensaísta carioca Francisco de Assis Barbosa, autor da biografia mais detalhada de Lima Barreto publicada em 1952. Falecido em 1991, Francisco Barbosa também foi o responsável pela compilação das obras completas de Lima Barreto para a Academia Brasileira de Letras.
A principal novidade de "Lima Barreto – Triste Visionário" está no recorte realizado pela autora. Seu foco recai sobre as questões sociais e raciais presentes tanto na vida como na obra de Lima Barreto. Uma abordagem que procura mostrar como o escritor usou a cor da pele em sua literatura e como a questão racial foi fundamental em seus escritos.

Afonso Henriques de Lima Barreto nasceu na cidade do Rio de Janeiro, em 1881, filho de ex-escravos. Quando a Lei Áurea foi sancionada, em 1888, tinha oito anos de idade. Perdeu a mãe para a pneumonia e o pai para a loucura. Apesar das dificuldades, se dedicou aos estudos e viveu na pele os conflitos de ser um negro ocupando espaços dominados por brancos. A discriminação o perseguiu por toda a existência.

Tudo indica que, após viver cotidianamente a exclusão social e a descriminação racial, Lima Barreto fez desses assuntos a temática de sua literatura. Defendia que a escravidão não havia acabado com a abolição. A escravidão, na realidade, teria ficado profundamente enraizada nos costumes mais cotidianos da população brasileira.

Em sua época, Lima Barreto era chamado de "autor sem imaginação". Justamente por retratar, em seus contos, crônicas e romances, a vida de pessoas simples do subúrbio vivendo numa cidade diferente da cidade dos mais abastados.

O fato é que, na época em que viveu, Lima Barreto não conseguiu o sonhado reconhecimento. Passou a beber de maneira desenfreada e acabou passando duas temporadas no Manicômio Nacional. A primeira vez em 1914, a segunda em 1918. Durante a última temporada escreveu "Cemitério dos Vivos", livro publicado postumamente em 1953.

O Brasil retratado pelo escritor é um país de mais de um século atrás. Mas mesmo assim, as semelhanças são assustadoras, como numa de suas crônicas escritas em 1908: "A República no Brasil é o regime da corrupção. Todas as opiniões devem, por esta ou aquela paga, ser estabelecidas pelos poderosos do dia. Ninguém admite que se divirja deles e, para que não haja divergências, há a ‘verba secreta’, os reservados deste ou daquele Ministério e os empreguinhos que os medíocres não sabem conquistar por si e com independência."
Lima Barreto faleceu em novembro de 1922, aos 41 anos. Vítima de um ataque cardíaco. Balbuciando uma frase que gostava de repetir: "A literatura ou me mata ou me dá o que eu peço dela".

Serviço:
"Lima Barreto – Triste Visionário"
Autora – Lilia Moritz Schwarcz
Editora – Companhia das Letras
Páginas – 648
Quanto - R$ 69,90 e 39,90 (e-book)

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Fragmento

Foi dado à minha geração presenciar a eclosão da linguagem dos direitos civis no Brasil – o direito da diferença na igualdade, e vice-versa –, e é possível reler Lima Barreto com base nas suas denúncias e nas angústias que ele sentiu diante de uma série de marcas que a sociedade cria e transforma em diferença e preconceito. Aí está, pulsante, a questão racial, para lembrarmos de um tema sensível e definidor da pessoa e de toda a obra do autor. O escritor jamais deixou passar o fato de o Brasil ter sido o último país do Ocidente a abolir a escravidão mercantil; viu e denunciou práticas de discriminação presentes, teimosamente, no seu próprio contexto. Isso num país em que – a despeito de ter recebido 45% da população africana que deixou compulsoriamente seu continente –, até aquele momento, eram poucos os que declaravam fazer uma literatura impactada pelos sofrimentos mas também pela criatividade, pelo trabalho e pelos conhecimentos das populações afrodescendentes. Não por causa, e exclusivamente, de sua origem e do exílio forçado; mas por conta dos temas, dos sons, dos gestos, das cores, das religiões, das filosofias que ficaram impregnadas nesse Brasil em construção. É claro que esse tipo de adjetivação racial não faria muito sentido na via oposta; dizer que um escritor faz, por exemplo, "literatura branca". Aliás, esse é quase um pressuposto, em geral oculto nas análises. Assim, se Lima Barreto foi também um grande cronista carioca e das ruas do Rio de Janeiro; sua obra se distingue das demais, sobretudo nesse momento, em razão do tipo de testemunho que ele traz com sua literatura, dos personagens que escolhe como protagonistas, dos enredos que cria, dos detalhes que seleciona descrever. Por sinal, ele fez questão de igualmente definir-se como "um autor negro", para ficarmos com seus termos, e impregnar sua narrativa por outras esquinas desse mesmo país.

(Fragmento de "Lima Barreto – Triste Visionário", de Lilia Moritz Schwarcz)