Em ‘King Kong: a ilha da caveira" há citações a "Jurassic Park", "Apocalipse Now" e até  a" Caçadores da Arca Perdida"
Em ‘King Kong: a ilha da caveira" há citações a "Jurassic Park", "Apocalipse Now" e até a" Caçadores da Arca Perdida" | Foto: Fotos: Reprodução



Por essa ninguém esperava. 84 anos depois que Merian C. Cooper e Ernest B. Schoedsack alcançaram uma das maiores glórias da História do Cinema com "King Kong" (1933), sublime e aterradora revisão do mito da bela e a fera em chave de filme de aventura e fantasia com insuspeitadas tintas psicanalíticas, ressurge das brumas da Ilha da Caveira, em impecáveis medidas - 90-180-90, metros, não centímetros - um dos personagens de ficção mais estimados pelo imaginário da cinefilia. A esta altura da saga King Kong, fica difícil saber se estamos diante de uma sequela, um reboot, ou nova versão, um remake ou, para usar termo mais corrente no mercado mundial de cinema, um spin-off – produto derivado de outro pré-existente. Nenhuma rotulação importa, desde que o objeto em questão seja desfrutável, aqui no sentido bem pudico de curtível enquanto entretenimento. E este é um filme que de fato se presta ao desfrute inocente, à matinê com pipoca, ao susto sem culpa e à torcida organizada por Kong, guardião imbatível de um lugar misterioso e ameaçador onde ciência e mito andam de mãos dadas, e onde também se comenta que ali Deus não completou a criação.
Esta superprodução classe A (U$ 200 milhões), mas com espírito classe B - B de budget/baixo orçamento, ou o segundo filme de um mesmo gênero que completava um programa duplo, na Hollywood de meados do século passado - é uma espécie de combo com influências e citações (jamais plágios) diversas, mas que funciona às mil maravilhas graças a um tom ligeiro que nunca se leva demasiadamente a sério, o humor está sempre à espreita, não importam algumas ácidas alusões políticas no roteiro e a perfeição tecnológica que desfila barulhenta diante da plateia, e que faz tudo parecer assustadoramente...irreal.
Esta é uma espécie de filme que, por volta dos anos 1950, a garotada chamava com arrepiante carinho de "filme de monstro", assim como havia "filme de mocinho" (westerns), "filme de pirata", "filme de comédia", "filme de vampiro", "filme de desenho animado" e, claro, os chatos "filmes de amor".

A sensual e lasciva Jessica Lange no filme de 1976
A sensual e lasciva Jessica Lange no filme de 1976



AVENTURA
"A Ilha da Caveira" é a história de um grupo de exploradores – cientistas e militares – que chega a uma ilha escondida nos mapas em meio a tempestades magnéticas e peculiaridades geológicas, justamente quando os EUA perdem a guerra (retificando à moda Nixon: se retiram) do Vietnam, nos anos 1970. Os derrotados marines com sede de vingança, comandados por um paranoico Samuel L. Jackson, elegem uma vez mais como alvo preferencial o vietKong errado, naquilo que vai ser um desastre literalmente monstruoso. No grupo não belicoso estão geólogos, um rastreador, uma fotógrafa da histórica revista "Life" e outros que, agora conhecendo os perigos do entorno, querem é sair dali com vida o mais rápido possível.
Além do Kong gigantesco - mas que mantém a fórmula das primeiras origens, "brutal, mas uma fofura" -, há seres muito, mas muito esquisitos, além de letais: aranhas que matam por empalamento, indescritíveis lagartos das profundezas, aves bem crescidas com péssimas intenções e as formigas - citadas, aguardadas, mas que devem ter ficado na mesa de montagem. Resumindo, um show de monstros para não dever um só fotograma à nostalgia. Há também, honrando a tradição dos Kongs de outras décadas, uma tribo de nativos antropologizados em demasia e que sobrevive à sombra protetora do símio descomunal. Vale agradecer muito que o argumento não previu um segmento urbano (dinheiro havia), ficando todo o imbróglio só nos limites do desconhecido.
À medida que o tempo passa no escuro da sala (vale lembrar sempre a magia), olhos e ouvidos clínicos do espectador vão catalogando ideias, imagens e sons decalcados de outros títulos, especialmente "Jurassic Park" e "Apocalypse Now" (em vez de Beethoven embalando os helicópteros, o "Paranoyd" heavy metal do Black Sabath), sem desprezar "Caçadores da Arca Perdida" e com um piscar de olhos no prólogo para "Inferno no Pacífico" (1968). O diretor Jordan Vogt-Roberts sabe o que faz, e faz com o mínimo de relutância para não cometer imprudências: não apela à plausibilidade nem à seriedade de muitas ficções atuais que dotaram seus personagens de imponência dramatúrgica descabida. Ele sabe (e quer) que seu conceito fique ali mesmo, próximo do ridículo, e mantém um tom absurdo e até antiquado nos diálogos e caracterizações. Aqui ninguém posa para Oscar, e é esta estratégia que conduz a narrativa coerente com a fantasia que pretende expor. Jackson e John C. Reilly furos acima dos demais, ficando no entanto submetidos a um Kong que esbanja carisma.
No capitulo "As musas de Kong" (nas três versões mais importantes, 1933, 1976 e 2005) cabem alguns resgates. Fay Wray, a primeira (e para muitos a única), é uma pioneira de peso, trajando uma ousada (padrões anos 30) seminudez que despertou na fera instintos que motivaram o surgimento em 1934 do republicano e malfadado Código Hays de autocensura hollywoodiana. Jessica Lange, a da versão 1976 (John Guillermin), ganhou página de antologia por sua dúbia, sinuosa, lasciva e muito sexualizada entrega à bestialidade de Kong. Naomi Watts, em 2005 (Peter Jackson), foi mais a atleta a fazer gracinhas patéticas diante de um Kong ranzinza do que outra coisa. E esta Brie Larson oscarizada em 2016 por "O Quarto" (alguém se lembra?) é a última a desfilar, sem muito empenho afetivo, nesta passarela que é a palma da mão do gorila master. Mas ao contrário dos decisivos encontros anteriores entre as damas em perigo e seu salvador, em "A Ilha da Caveira" o final foge à regra.