Para início de conversa, “Assassinos da Lua das Flores" é muito familiar a “Os Bons Companheiros” e a “Os Infiltrados”, embora lidando com um tipo de gangsterismo que os Estados Unidos há muito se recusam a enfrentar, como um esforço organizado para roubar e massacrar seus povos indígenas para obter lucro. Tão simples assim, mas tão complexo assim. Lá como aqui.

Em 1894, grandes reservas de petróleo foram descobertas em terras pertencentes à nação indigena Osage. Eles garantiram a propriedade dos direitos minerais e se tornaram as pessoas (per capita) mais ricas da Terra. Então os lobos vieram, os avós desses mais recentes, o de Wall Street, que o mesmo Scorsese retratou há exatos 10 anos. No alvorecer de um novo século, e durante um período conhecido como o Reinado do Terror, muito membros dos Osage foram assassinados, sendo a sua parte dos direitos petrolíferos herdada pelos conspiradores brancos que se casaram com membros de suas famílias. O filme se concentra em um desses indivíduos, Ernest Burkhart (Leonardo DiCaprio), que chegou a Fairfax, Oklahoma, e se casou com Mollie Kyle (Lily Gladstone) a mando de seu tio, William Hale (Robert De Niro).

Scorsese tem afirmado que o filme é seu seu primeiro western. Ok, mas é evidente que o filme retoma suas fixações tradicionais: o núcleo apodrecido do coração do homem; como o poder gera o impulso para a destruição; os mitos dos cowboys e dos bandidos, e a verdade suja sobre eles. Hale/De Niro, que confunde poder com sabedoria, afirma que o destino determinou que o tempo da nação Osage chegou ao fim. “Essa riqueza vai acabar”, diz ele a Ernest/DiCaprio. “Eles são um povo de grande coração, mas doentios.”

Um corte súbito e desestabilizador no final da cena – cortesia da magia da editora Thelma Schoonmaker, unha e carne de longa data responsável por grande parte da propulsão eletrizante de Scorsese – nos confronta com a violência dessas palavras. Um homem osage é visto morrendo, caído no chão e engasgado com veneno. Scorsese nunca foi do tipo que estabeleceu conscientemente seus próprios limites morais; ele é simplesmente um diretor que conta histórias com tanto cuidado e empatia que a barbárie desses crimes deixa para trás sua própria pestilência.

Quando Scorsese começou a adaptar o livro de não ficção de David Grann de 2017 sobre os assassinatos dos Osage, ele e o roteirista Eric Roth inicialmente transportaram o foco central do autor do livro: Tom White, o agente do FBI encarregado por J Edgar Hoover de resolver o crime. Mas isso, percebeu Scorsese, teria transformado alguém indigno em herói. Embora o personagem vivido por Jesse Plemons seja um branco estóico no filme, o foco permanece no casal Mollie e Ernest, que dizem ter se amado apesar de tudo – é um tipo de amor que desperta o bem em Ernest, mas não consegue proteger Mollie.

DiCaprio, com a boca cheia de dentes podres, nos oferece um homem que é amoroso, fraco e feio lá no fundo de sua alma, um homem cuja bochecha se contorce quando ele mente e cujo corpo se deteriora pela culpa mais rápido do que qualquer veneno. Mas é Mollie/Lily Gladstone quem fornece o centro de gravidade do filme. Ela oferece uma das atuações mais extraordinárias de uma mulher em qualquer filme de Scorsese. Ela é serena, mas não santa; uma figura de tragédia com uma fogueira interior. A primeira vez que mergulhamos na perspectiva de Mollie, acontece com uma força que poderia sugar o ar do seu corpo. Os olhos dos homens e mulheres brancos ao seu redor estão cheios de desgosto. Os dela sabem tudo sobre o futuro que se aproxima .

“Assassinos da Lua das Flores”, apesar da dupla de atores-fetiche de Scorsese é, em última análise, enquadrado na perspectiva da Nação Osage – que trabalhou exaustivamente na produção como consultores, artesãos e atores. O filme abre e fecha com seus rituais. Parecem até emitir uma advertência para aqueles que tentam destruí-los. Numa cena chave enquadrada pelo incêndio de terras agrícolas, Mollie diz a Ernest: “Você é o próximo”. Nesta recontagem silenciosamente apocalíptica da história, a destruição da América branca não terminará nas suas próprias fronteiras – eventualmente, ela vai também se auto-consumir.

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