Sebastião Nunes publicou mais de 30 livros marcados pela crítica, a sátira e o experimentalismo
Sebastião Nunes publicou mais de 30 livros marcados pela crítica, a sátira e o experimentalismo | Foto: Fotos: Divulgação



Numa bela manhã de 1942, o ator Grande Otelo encontra o cineasta Orson Welles numa esquina do Rio de Janeiro. Os dois entram no boteco mais próximo, pedem cerveja e sardinha frita. Na conversa que se desenrola, Welles tenta convencer Otelo a seguir a carreira de ator nos Estados Unidos e ganhar rios de dinheiro. Otelo tenta argumentar que se já era complicado ser negro no Brasil, imagine nos Estados Unidos.
Numa noite do carnaval de 1935, o médico e memorialista Pedro Nava vaga por Belo Horizonte à procura de algum lugar com samba. Acaba caindo na zona do meretrício onde conhece um rapaz franzino e de queixo torto chamado Noel Rosa que se recupera de tuberculose. Tocando uma caixa de fósforos, Noel, canta sambas que fazem Nava rolar no chão de rir.
Numa madrugada de 2015, no Cemitério São João Batista, os escritores Machado de Assis e Lima Barreto saem de suas respectivas tumbas para apreciar a lua. Na conversa que os dois travam ao luar, Lima acusa Machado de ter passado a vida inteira brigando com o mundo por ser mulato. Por outro lado, Machado acusa Lima de ter passado a vida inteira brigando com o mundo por ser louco.
Esses encontros ficcionais entre Otelo e Welles, Nava e Noel, Machado e Barreto, são criações do escritor mineiro Sebastião Nunes. Eles estão registrados no livro "Começa a Envelhecer a Mulher Mais Bela do Mundo" que acaba de ser lançado pela editora Dubolsinho. O volume traz 35 narrativas que promovem encontros improváveis entre escritores, poetas, cantores, compositores, políticos, atores, bandidos, figuras histórias, personagens literários e mitológicos.
Alguns dos encontros poderiam até chegar próximos de uma situação supostamente realista. Algo como o encontro entre Charles Chaplin e Al Capone, Antônio Conselheiro e Euclides da Cunha, Pablo Picasso e Guillaume Apollinaire, Ernest Hemingway e Che Guevara.
Outros encontros, a grande maioria, precisariam de uma boa dose de associação imaginativa. Coisas como Dolores Duran e Maysa, Caravaggio e Dom Quixote, Tristan Tzara e Lenin, Bocage e Machado de Assis, Ray Bradbury e um E.T., Manuel Bandeira e Gilberto Freyre, John Lennon e Leonard Bernstein.
Em algumas narrativas de "Começa a Envelhecer a Mulher Mais Bela do Mundo", Sebastião Nunes utiliza sua veia satírica para produzir encontros permeados pelo humor. É o caso do texto em que três poetas brasileiros do século 19 se encontram para criar uma proposta satírica para a Constituição do Brasil. Manuel de Azevedo, Bernardo Guimarães e Aureliano Lessa escrevem a chamada "Proposta de Constituição Para um Império Assustado".
Sobre a organização nacional, o primeiro artigo diz: "O que não mata engorda". O segundo: "Papagaio come o milho, periquito leva a fama". O terceiro deixa claro: "Se merda fosse dinheiro, pobre nascia sem traseiro".
Sobre a declaração de direitos, o artigo primeiro afirma: "Cada macaco no seu galho". O segundo artigo completa: "Miséria pouca é bobagem". O artigo terceiro conclui: "Uns gostam dos olhos, outros da remela".
A ordem econômica e social abarca quatro artigos: "Mais vale um toma que dois lhe darei"; "Quem nasce para cachorro morre latindo"; "Vergonha é furtar e não poder carregar"; e "Ladrão que rouba ladrão tem 100 anos de perdão".
Sobre a família, educação e cultura, no primeiro artigo aparece: "Por fora bela viola, por dentro pão bolorento". No segundo: "Macaco velho não mete a mão em cumbuca". Para completar os três artigos restantes: "Quem nasce para dez réis nunca chega a vintém"; "Antes só do que mal acompanhado"; e "Quem vai na frente bebe água limpa".

Sebastião Nunes nasceu na cidade de Bocaiuva, em 1938, e vive em Sabará, Minas Gerais. Escritor e artista gráfico, publicou mais de três dezenas de livros de poesia, prosa e literatura infantil. Com uma obra marcada pela crítica, pela sátira e pelo experimentalismo, desenvolve há décadas uma literatura singular que circula longe da grande indústria editorial brasileira.

Serviço:
"Começa a Envelhecer a Mulher Mais Bela do Mundo"
Autor – Sebastião Nunes
Ilustrações – Sebastião Nunes
Editora – Dubolsinho
Páginas – 176
Quanto – R$ 41.90

Imagem ilustrativa da imagem Improváveis encontros quase impossíveis
Fragmento: Logo em frente, abriram-se silenciosamente as portas de amplo e moderno elevador, dotado de poltronas reclináveis, ar-condicionado e música ambiente. – Uauuu! – exclamou Sancho. – Isso é muito melhor do que lombo de burro. – Pois é – disse Caravaggio. – Como nunca saiu do Aqueronte, o velho barqueiro Caronte não sabe das transformações. Mas você ainda não viu nada. Dom Quixote, pouco acostumado a mordomias e modernismos, só olhava para um lado e para o outro, através das janelas panorâmicas do elevador. Viu coisas do arco-da-velha – ou mais. Tudo lindo, maravilhoso, fantástico. – Estão gostando? – perguntou sorridente Caravaggio. – Pois é só o começo. Foram-se os tempos em que o Inferno era lugar de sofrimento. Hoje é o mais avançado dentro turístico do mundo. Enquanto o antiquado Céu vive às moscas, no Inferno todos os lugares estão reservados com anos de antecedência. – E quem são os condenados, digo, os felizardos que vêm para cá? – indagou curioso Dom Quixote. – Quero dizer, quem tem preferência? – É por sorteio – respondeu Caravaggio. – Reunido com Satanás, Deus, em Sua sapiência infinita, decidiu que as entradas fossem sorteadas entre os condenados. E assim tem sido feito desde... desde quando mesmo? Pois não é que esqueci? (Fragmento de "Guiados Pelo Pintor Caravaggio, Dom Quixote e Sancho Pança Visitam o Inferno", texto que integra "Começa a Envelhecer a Mulher Mais Bela do Mundo" de Sebastião Nunes)