Tentar definir a cultura flamenca a apenas um aspecto é limitar sua existência. Não é só o canto, não é só a palma, não é só a guitarra espanhola, não é só a dança. Ver e sentir a energia dessa junção de elementos é um encontro com a própria história de uma manifestação que é fruto da fusão de culturas.


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O prazer, no sentido mais profundo e físico, toma conta a cada novo melisma rasgado, a cada nova espalmada na guitarra, a cada voleio da saia, a cada golpe do sapateado. Os "palos" – variados ritmos do flamenco – entrelaçam-se cada qual ao seu toque para que o sofrimento torne-se alegria, o amor confunda-se com a dor, a euforia transmita a lamúria, enquanto o coração aguarda por mais um "olé" imponente. O flamenco transborda a arte corporal e musical ao tempo em que expressa os "duendes", sentimentos e emoções da alma. Tudo isso pôde ser presenciado no espetáculo Flamencos 2, durante a realização da 2ª Semana Flamenca de Londrina.

De origem do sul da Espanha, há mais de cinco séculos na região de Andalucia, a cultura flamenca é resultado, principalmente, da influência da cultura cigana e raízes na cultura moura e árabe. Porém, outras tantas foram sendo incorporadas ao longo dos anos. Nasce como manifestação cultural desses povos que eram perseguidos pela Santa Inquisição. Obrigados, então, a se estabelecer em locais isolados para sobreviver, usavam o "cante" para expressar a melancolia, o fatalismo e a tragédia. Mas, também, o espírito festeiro.



"Tudo se constrói em torno do cante, nome dado a essa voz melódica peculiar que manifesta os sentimentos mais profundos, além dos gritos de lamento. O acompanhamento rítmico pelas palmas e golpes dos pés no solo foram incorporados à arte e, posteriormente, o som da guitarra espanhola foi introduzido para fazer parte da cultura flamenca. Por último, o cajón, instrumento de percussão", explica Ozir Padilla, cantaor de flamenco.

Se a força do cante é a alma do flamenco, a dança é o físico materializado em movimento. "É a reação do corpo ao som da guitarra ou à letra do cante que personifica a dor, o abandono, solidão, desprezo, as alegrias, o amor, o desejo que estão estampados na postura corporal e nas fisionomias dos dançarinos. Existem padrões dos passos e do trabalho das mãos, mas cada "bailaor" imprime sua identidade e personalidade.



Ou seja, não trata-se apenas de uma coreografia e técnica elaborada, é, antes de tudo, sentimento puro e espontâneo", comenta o bailaor Fábio Rodriguez, convidado especial do evento. Cada parte do corpo, segundo ele, funciona de maneira isolada, por isso, o domínio da técnica evolui ao ponto da consciência corporal. "São movimentos muito fortes, de impacto, marcados pelo ritmo dos palos. Podem ser executados em solo, duplas ou grupos por homens e mulheres", diz, completando que, apesar de origem no sul da Espanha, a dança flamenca difere-se das danças regionais espanholas.



Introduzida mais recentemente à arte, a guitarra espanhola utilizada no flamenco origina-se do alaúde árabe. A guitarra de flamenco tradicional é feita de madeira de cipreste e abeto e é mais leve e um pouco menor que a guitarra clássica, com o objetivo de produzir um som mais agudo. Micael Pancrácio, guitarrista convidado para o encerramento, explica que, ainda que o flamenco aparente ter uma melodia improvisada, existe uma estrutura definida da guitarra que passeia pelos modos maiores, menores e frígios (modo gregos), além das escalas ciganas e heranças orientais. "Nenhum acorde é tocado em vão. Cada palo possui um conjunto de características que se destaca, sobretudo, pela rítmica, chamada de soniquete, o suingue do flamenco e o grande trunfo dessa arte." Dentre os "palos" mais executados estão soleá, malagueña, bulerías, rumbas, jaberas, tientos e tarantas, que diferem em sua estrutura rítmica que são marcados pelo batida do cajón.




E assim o flamenco expandiu as fronteiras de Andalucia, ultrapassou os limites geográficos e ganhou o mundo com a migrações que tanto contribuíram para sua difusão. Tanto que, desde 2010, é considerada Patrimônio Cultural Imaterial da Humanidade pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). Apesar de sua forte herança de povos marginalizados, tornou-se referência na música e na dança. O crescimento levou, inclusive, ao surgimento de outras vertentes, incorporando expressões contemporâneas e clássicas no cante, no baile e na instrumentação.