“Você não é o seu trabalho”, doutrinou Tyler Durden/Edward Norton em “Clube da Luta” (1999). Agora, vinte e quatro anos depois, o mesmo diretor David Fincher tomou o caminho oposto: “O Assassino”, seu filme mais recente - em lançamento mundial nesta sexta-feira (10) no streaming Netflix, depois de rapídamente passar pela tela grande das salas de cinema - apresenta-se explicitamente desde os primeiros momentos como o estudo meticuloso de um personagem que acredita na autorrealização através do profissionalismo anónimo, na exaltação quase dogmática das rotinas de trabalho, na disciplina monástica como ferramenta para transcender o tédio e encontrar significado no processo puro.

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Para isso, o cineasta teve por companhia mais uma vez Andrew Kevin Walker, roteirista de “Se7en” (1995), embora o assassino deste “The Killer” não seja mais diferente daquele John Doe (Kevin Spacey) em termos de hábitos e disposição: se para Doe o ato de matar era um simples meio para atingir um fim, o personagem aqui interpretado por Michael Fassbender concentra-se no próprio processo do crime, rejeitando explicitamente qualquer intenção ou vontade atuante. É, por outras palavras, a distância essencial entre o artista e o artesão, uma dicotomia que Fincher parece ter sempre em mente. Nas origens, o mitológico e refinado “O Samurai” de Melville/Alain Delon (1967) e o mais “working class” “Assassino a Preço Fixo”, de Michael Winner/Charles Bronson (1972), ambos a meio século de distância.

Se a filmografia do diretor de “A Rede Social” (2010) sempre girou em torno da criação, em todas as suas formas mais expressivas, “O Assassino” introduz um toque sarcástico no procedimento: o que acontece quando um aniquilador com mentalidade cartesiana, alguém que planeja seus trabalhos com a total ausência de empatia de quem é capaz de dissociar qualquer componente moral para focar na sua própria ideia egomaníaca de eficiência, comete um erro que derruba seu castelo de cartas mental com uma pequena distração? Como um maníaco por controle lida com o caos resultante de seus próprios erros?

IMAGENS PODEROSAS

David Fincher é inteligente demais para transformar sua última joia em algo que se assemelhe a um conto de redenção; então a resposta dele a essas perguntas assume a forma de contrariar os mecanismos básicos que impulsionam qualquer thriller comercial sobre vingança. Graças a esta espécie de purificação extrema, as imagens muito poderosas de “O Assassino” continuam a surgir sem trégua na retina de um espectador que, no ato final, terá sincronizado completamente o seu olhar com o do protagonista. Mais ou menos como uma engrenagem autoconsciente de uma máquina capitalista que só pode ser retratada à distância e com cinismo, até por uma questão de sobrevivência.

Fincher produz uma de suas obras mais precisas e rigorosas, embora seu olhar de samurai-cineasta também vacile quando o romantismo aparece na história. E isso torna o filme muito mais complexo do que parece. Não é apenas um thriller sobre um assassino em busca de vingança. É o retrato de um mundo que está em declínio, mas que não tem nenhuma utopia em que acreditar para o futuro. “O Assassino” é uma das sátiras sociais mais corrosivas e incisivas dos últimos tempos, mesmo que seu tom existencialista impregnado de niilismo esteja sempre à mão.

Uma exploração da violência calculada, sóbria e emocionante, uma experiência sensorial que dá a Michael Fassbender seu papel mais importante e desafiador desde “Vergonha”, de Steve McQueen, (2011), aliás outro sociopata, adicto sexual. “The Killer” permite que Fincher exercite seus próprios instintos perfeccionistas através de um entretenimento corajoso e elegante que faz de sua distancia emocional uma virtude.

Agora, se você preferir, pode ver o filme como um filme sobre si mesmo, sobre o seu procedimento e a sua execução. A encenação é de um rigor indiscutível: não falta nada, nada é excesso, tudo está onde deveria estar.