Os romances de Patricia Highsmith, a suma sacerdotisa do thriller psicológico, mergulham nas profundezas sombrias da condição humana. Luxúria, desejo reprimido, ciúme, suspense, ansiedade de classe, raiva – e geralmente pelo menos um assassinato – são elementos recorrentes em seu trabalho. A natureza dramática do trabalho de Highsmith, personificada por personagens complexos e fascinantes – o casal infeliz Vic e Melinda Van Allen, cujo conflito conjugal mascara o assassinato em “Deep Water/Em águas Profundas” até a distante mas atraente dona de casa Carol Aird em “The Price of Salt/Carol” –, presta-se bem a tela grande. “Strangers on a Train”, o primeiro romance de suspense de Highsmith, foi publicado em 1950 e transformado no filme “Pacto Sinistro” apenas um ano depois por Alfred Hitchcock. Recheado de chantagem, intriga e obsessão, o thriller foi a primeira de muitas adaptações para a tela que seriam feitas da obra de Highsmith, que compreende 22 romances e contos.

Embora já tenham transcorridos mais de 70 anos desde que seu primeiro romance foi publicado, as emoções de Highsmith continuam chegando e em geral sendo bem recebidas – suas histórias, sombrias, abordam temas universais como conflito moral e formação de identidade, tornando-as ao mesmo tempo apropriadas e atemporais. Caso em questão: “Ripley”. a nova minissérie da Netflix, estrelada por Andrew Scott como o charmoso mas sinistro vigarista Tom Ripley do romance de Highsmith de 1955, “The Talented Mr. Ripley/O Talentoso Mr. Ripley”. Embora o roteirista e diretor Steve Zaillian (Oscar pelo roteiro de “A Lista de Schindler”) tome algumas liberdades com a história emocionante, o toque hábil de Highsmith pode ser claramente sentido na interpretação nitidamente sombria de Scott do notório Ripley, o personagem definitivo de Highsmith (e também das adaptações para cinema e tevê): falho, complicado e, ainda assim, de alguma forma, infinita e desconcertantemente identificável.

A duração de oito capítulos/horas permite que “Ripley” se aproxime mais do tortuoso enredo do romance do que o filme francês de 1960, “O Sol por Testemunha”, que escalou o jovem Alain Delon para o papel de Ripley, ou a correta mas superestimada versão de Anthony Minghella, de 1999, estrelada por Matt Damon. Tom Ripley é um golpista cínico e amoral que sobrevive de falcatruas no início dos anos 1960 em Nova York, quando é convocado para se encontrar com Herbert Greenleaf, magnata da navegação cujo filho hedonista Richard vive um preguiçoso “far niente” na Itália com muito dinheiro. O empresário quer que o jovem volte para casa e está disposto a pagar um amigo – Tom se lembra vagamente de Richard, como Dickie – para resgatá-lo. Mas ao chegar à costa amalfitana (próxima de Salerno) onde Dickie (Johnny Flynn) instalou sua casa, ele o encontra muito arraigado em sua rotina diletante de se aventurar na pintura e flertar com uma vizinha americana, Marge (Dakota Fanning), para ceder. O objetivo de Tom logo muda para prolongar sua estadia. Assustado com a crescente fixação de Tom por ele, Dickie tenta se livrar de seu convidado, mas só consegue acirrar o psicopata interior de Tom.

No filme em preto-e-branco, o fotógrafo Robert Elswit, que já ganhou um Oscar, conquista o espectador e remete a grandes mestres do cinema italiano
No filme em preto-e-branco, o fotógrafo Robert Elswit, que já ganhou um Oscar, conquista o espectador e remete a grandes mestres do cinema italiano | Foto: Divulgação/ Netflix

LINGUAGEM VISUAL

Existem dois excelentes motivos para saborear a minissérie, em toda a sua languidez – o habitual consumidor Netflix provavelmente vai achar o ritmo enfadonho, e ainda por cima monocromático ! O primeiro é o cuidado que Steven Zaillian, que escreveu e dirigiu todos os episódios, teve ao fazê-la. Os intérpretes no entorno de Scott foram escolhidos de maneira inteligente; Flynn captura a alegria de Dickie, enquanto Fanning dá à combativa Marge alguma afliçao medida. Também excelente, e muitas vezes esquecido na tevê é o design de som. Campainhas estridentes, campainhas de serviço de recepção e, especialmente, telefones tocando atormentam Tom, ameaçando expor seus enganos. Zaillian traduz com sucesso para a linguagem visual motivos do livro, como o medo de água de Tom. Nas cidades costeiras, de Nápoles a Veneza, o mar brilha tentadoramente ao sol da tarde, mas abaixo da superfície esconde-se uma extensão desconhecida de escuridão sem fundo.

A princípio, a cinematografia em preto-e-branco pode parecer pretensiosa – uma maneira fácil de elevar “Ripley” acima do mediocre padrão original Netflix, independente de arte. Mas o fotógrafo Robert Elswit (Oscar em 2007 pelas imagens de “There Will be Blood/Haverá Sangue”) conquista qualquer paladar limitado. A vida de Tom em Nova York tem a coragem das fotos da cena do crime dos tablóides. Na Itália, onde estátuas enfeitam praças, querubins esculpidos se agarram às fachadas dos edifícios e cruzes antigas estão por todo o lado, os panoramas de postais de Elswit poderiam ter saído diretamente de filmes italianos de meados do século de Fellini, Antonioni ou Rossellini. No perfil de um assassino que adora a arte pela arte, essas alusões fazem total sentido e também estabelecem um clima mais frio e sinistro.

O outro grande, imenso trunfo de “Ripley” é Scott, que, aos 47 anos, nos deu o primeiro Ripley definitivo na tela. Scott registra com sobras cada nuance do vigarista camaleônico. O ator irlandês oferece uma atuação que oscila entre sociopata, medroso, desesperado e infantil. Quando o conhecemos, ele está sufocado por sua existência miserável e desconfortável em sua própria pele. Como escreveu Highsmith, Tom “sempre achou que tinha o rosto mais monótono do mundo, um rosto completamente esquecível, com uma expressão de docilidade que ele não conseguia entender, e uma expressão também de vago medo que ele nunca foi capaz de apagar”.