Imagem ilustrativa da imagem Doutor em roteiros
| Foto: Gustavo Carneiro



Luís Felipe poderia, perfeitamente, ser um personagem de novela. Ou de seriado. Ou de filme. Ou de teatro. Possuidor de várias características interessantes – físicas e psicológicas – um prato cheio para ter o perfil destrinchado em uma história. De sorriso largo que chama atenção, é capaz de conversar com duas pessoas ao mesmo tempo, esbravejar para em seguida fazer piada. Incomoda-se com o relógio digital novo que não para de vibrar no braço enquanto a fala ininterrupta dá lugar ao olhar longínquo em questão de segundos. Volta a falar. Os pensamentos não param e o assunto não acaba; são digressões em cima de digressões. Às vezes, difícil de acompanhar, mas interessante de observar. Luís Felipe, na vida real, é Doc Comparato, um médico cardiologista por formação que tornou-se um dos mais conhecidos e respeitados roteiristas e dramaturgos brasileiros. Também é escritor e ator. Ele esteve em Londrina para ministrar uma semana intensa de oficina sobre roteiro promovido pela Kinopus Audiovisual em parceria com Aliança Francesa.

Doc (abreviação de doctor) começou a escrever contos quando fazia especialização médica na Inglaterra. A ficção falou mais alto. Prestes a iniciar as comemorações dos 40 anos de carreira, é um dos pioneiros no País a mostrar novas possibilidades na criação de roteiro. Autor de livros que até hoje fazem sucesso ("Roteiro" e "Da Criação ao Roteiro - Teoria e Prática"), ajudou na fundação do Centro de Criação da Rede Globo, atuando como roteirista em importantes projetos. Desde então, viu de perto todas as transformações da televisão e os rumos do audiovisual no Brasil, até chegar na popularização de plataformas streaming de vídeos de filmes e seriados. "Os fundamentos e princípios da dramaturgia não mudaram, apesar do tempo real das cenas terem diminuído e haver uma universalização do conteúdo movido pela pulverização dos meios de comunicação. Mas uma coisa não mudou, o ser humano. A alma e os sentimentos são os mesmos: amamos, odiamos, matamos, massacramos como antes. E a dramaturgia vive desses conflitos humanos."

Fruto das experiências acumuladas e de uma mente inquieta, tem um vasta lista de produção, principalmente de minisséries e filmes. É autor de roteiros de séries como "Malu Mulher", "O tempo e o vento", "A justiceira" e "Lampião e Maria Bonita", a primeira série latino-americana a receber a Medalha de Ouro do Festival de Cinema e Televisão de Nova Iorque. No cinema, assina o roteiro de diversos filmes, entre eles "O Beijo no Asfalto" (1980), "O Cangaceiro Trapalhão" (1983) e "Encontros Imperfeitos" (1993). Depois de produzir obras de peso no Brasil, morou mais de vinte anos fora, passando por diversos países. Na Espanha, trabalhou diretamente com Gabriel García Márquez na realização de uma série. "Se a forma mudou, o processo criativo, passa pelo mesmo caminho. Antes de tudo é preciso ter vivido, ter lido bastante, talento, inspiração e concentração, porque a imaginação nasce a partir desses alimentos. Isso continua. Porém, não cabe mais a premissa de 'uma ideia na cabeça e uma câmera na mão'. É preciso pensar no todo desde o início."

Então, se a estrutura dramática não é mais a mesma, tal qual os hábitos de consumo do audiovisual, os roteiristas tiveram de acompanhar o movimento e estão ocupando vários espaços. "Ainda que não exista uma regulamentação legal para os profissionais no País, essa é uma área que só cresce, tanto que qualquer cidade hoje tem uma produtora. A política de governo da Ancine veio a diversificar os núcleos criativos contemplando outros centros e dando uma oxigenação na produção nacional. Isso aumentou a importância do roteirista que, hoje, está presente em todas as mídias." Apesar disso, afirma que a televisão brasileira não está bem. "Eu praticamente não assisto mais à televisão e não gosto de novelas. Quer dizer, ligo na hora da novela das sete para ver minha filha, que está brilhando", gaba-se da cria mais nova, Lorena Comparato. A mais velha, a atriz Bianca Comparato alça voos por bandas internacionais.

Nesse sentido, hoje atua, literalmente como um médico de roteiros, na função de script doctoring. "Roteiro é o espetáculo visível em palavras, é uma crisálida que vai se transformar em borboleta. O que o público vê é o filme, o jornal, a série. Mas sem o roteiro nada dá certo. Então, analiso roteiros e aponto sugestões para os personagens e os descaminhos do enredo. Mas tem muita coisa vindo esse ano que estou produzindo." Se no roteiro tudo pode ser modificado, na vida real, nem sempre. Quase uma hora de conversa e o celular toca. "Alô, é tio Oswaldinho?" Não era. Era o primo informando que o pai havia falecido. "Meu último tio vivo se foi. Agora não há mais nenhum irmão do meu pai ou de minha mãe. Acabou." Com olhos marejados, a conversa que já caminhava para o fim termina ali. É hora da reportagem retirar-se de cena para que Doc processe a informação, ligue para familiares e sinta o luto. A morte não estava no script, mas entrou no enredo da vida real do roteirista.