"Tenho muita história aqui. O Ouro Verde para mim é sagrado", resume o ator e dramaturgo
"Tenho muita história aqui. O Ouro Verde para mim é sagrado", resume o ator e dramaturgo | Foto: Roberto Custódio



O ator, dramaturgo, escritor e compositor Mario Bortolotto participou do 19º Festival Kinoarte de Cinema com exibição do filme Borrasca, do cineasta Francisco Garcia na noite de quarta-feira (15). No filme, que é uma adaptação de uma peça teatral escrita por ele, Bortolotto faz parte do elenco e criou a trilha sonora. As muitas facetas e ofícios do artista londrinense começaram aqui e foram relembradas no percurso que fez a pé do hotel no centro da cidade até o Cine Teatro Ouro Verde.

A carreira do dramaturgo foi consolidada na década de 1990 quando chegou a São Paulo, mas sua obra não perdeu a essência que construiu em inúmeras tardes devorando livros na Biblioteca Pública, trocando ideias com amigos na escadaria do Teatro Zaqueu de Melo ou "tomando vinho barato" como ele mesmo faz questão de lembrar.

Ao pisar no palco do Ouro Verde outras lembranças vieram à tona como os cartazes que roubava na frente do antigo cinema e as montagens feitas aos domingos de manhã com ingressos vendidos com muito suor.

Bortolotto também continua com a energia de garoto com inúmeros projetos para 2018. "Tenho três peças novas que estou escrevendo". Já no cinema tem convite do cineasta Caue Angeli que já o dirigiu em Whisky & Hamburguer (2016). "Esse foi um filme pequeno, mas agora vamos tocar um projeto maior que é o 'Música para Ninar Dinossauros'. Também estou gravando novo álbum com a minha banda Saco de Ratos, além de lançar um novo livro de poesias agora em dezembro".

Na entrevista a seguir, o londrinense também se mostra preocupado com a interferência principalmente da Igreja Evangélica na política e fala sobre a dificuldade de manter seu teatro (Cemitério de Automóveis) no bairro da Consolação em São Paulo.



Como é estar de volta em uma estreia no Ouro Verde, desta vez no cinema?
Tenho muita história aqui. O Ouro Verde para mim é muito sagrado. Eu fazia peças aqui domingo de manhã. Isso porque a gente não tinha dinheiro para pagar o teatro à noite. Seu Israel que cuidava daqui, era quem liberava os "moleques" para fazer teatro. Ninguém acreditava que teria público de manhã e a gente conseguia umas 100 a 200 pessoas, em 1983. Fui andando do hotel para cá e fui lembrando muitas coisas que aconteceram naquela época.

A comunidade artística lutou muito para reconstrução do Ouro Verde? Como é sobreviver de teatro nos dias de hoje?
Sobreviver no teatro sempre foi difícil. É em 2017, como foi na década de 1980. Eu tenho um teatro agora em São Paulo e sinto na pele. É fundamental preservar esse espaço. É legal voltar a ter cinema, eu vi muito filme no Ouro Verde. Eu roubei muito cartaz aqui na frente. Este espaço é um orgulho para cidade.

Como você vê o debate polarizado nos dias de hoje quando as expressões artísticas tem sido atacadas?
O poder opressor dos evangélicos é o que atrapalha a cultura hoje. É um grupo moralista que não tem interesse nenhum por arte, apenas por dinheiro. O País vai sofrer muito enquanto não conseguirmos combatê-los. Já temos Marcelo Crivella na prefeitura do Rio de Janeiro, depois teremos em São Paulo. Quando eles começarem a dominar tudo não teremos como escapar. Eles vão acabar com cinema, com teatro com todas as artes, infelizmente.

Voltando a falar em memórias, o filme Borrasca trava um diálogo de dois amigos após a morte de um terceiro amigo. Tem muita experiência pessoal nesse retrato?
Sempre misturo ficção e realidade nos meus textos, não tem como escapar disso. Mas um episódio muito forte foi a morte de um grande amigo meu, Paulo de Tarso. O filme e a peça são dedicados a ele, não consigo não pensar nele. Toda vez que faço a peça, me vem essa imagem. Eu não escrevi pensando nele, mas ele morreu quando eu estava escrevendo a peça. É muito forte isso.

Como está sendo a repercussão do filme, ainda mais traduzida em prêmios?
Esse filme foi feito na base de amizade numa turma de amigos e gravamos em duas madrugadas em um apartamento no centro de São Paulo. É um filme bacana, independente, que privilegiou bastante o trabalho de ator e a fotografia. Participamos de dois festivais. Em Portugal (Festival de Cinema Luso-Brasileiro de Santa Maria da Feira), por exemplo, nosso filme foi exibido com outros longas com orçamento alto, como Elis. A escolha de melhor ator foi muito surpreendente.

Hoje o que te motiva mais: teatro, cinema ou a música?
Para mim o teatro sempre é mais importante do que tudo. Cinema eu faço quando sou convidado e quando gosto do projeto. Tenho muitos convites, mas às vezes eu fujo quando não gosto do roteiro. Cinema é perigoso, vai ficar aquela imagem sua, se você vai em um texto ruim, vão lembrar de você para o resto da vida, prefiro ficar com meu teatrinho mesmo.

Quais a experiências que você traz aqui de Londrina no teatro, algo que você gostaria de reviver?
A gente fez muita peça no Zaqueu de Melo no início da nossa carreira, em frente à escadaria da biblioteca, todos os dias tomando vinho barato. Ficava lendo, depois conversando com os amigos e as primeiras namoradas. Essa época é muito idílica, me transporta para uma época de muita poesia, quando aprendi muito lendo e escrevendo.

Você consegue manter essa essência até hoje?
Eu consigo, por isso agora tenho um teatro pequeno, não são peças grandiosas, mas as que privilegiam ator e texto. Quando acaba a peça, abrimos o bar. A meia noite a porta fecha e ficamos entre amigos. É muito parecido com que a gente tinha aos 20 anos. E agora a garotada que aparece lá fica ávida por conhecimento, como eu tinha naquela época em Londrina. Estou revivendo isso com eles.