Beto Carminatti, como todo adolescente típico dos anos 70, não era dos mais silenciosos quando assistia a um filme no cinema. Na Cinemateca do Museu Guido Viaro, criada em 75 e mais tarde, em 98, rebatizada como Cinemateca de Curitiba, Carminatti ia com frequência com seu irmão Rui Vezzaro e as respectivas namoradas. Era bagunça na certa. ''E o Valêncio não curtia isso. Para ele, cinema era algo sagrado, que não permitia essas molecagens'', conta Carminatti. O Valêncio de sua frase é, de batismo, Valêncio Xavier Niculitcheff, o homem por trás da criação da Cinemateca, espaço que deu origem a toda uma geração de cineastas.
''Com toda e absoluta certeza, esse grupo, conhecido como Geração Cinemateca, não existiria sem a atitude de Valêncio. O que ele fez foi um ato heróico'', enaltece um dos expoentes do grupo, o cineasta Fernando Severo. O ato de heroísmo foi promover a criação de um espaço cultural dentro da prefeitura da cidade, com poucos recursos e uma programação vasta. ''Vi diversas retrospectivas e pela primeira vez muitos dos filmes do Cinema Novo. E lá tive aula de montagem com o Peter Przygodda, editor dos filmes do diretor alemão Wim Wenders, e de direção com (os cineastas brasileiros) Ozualdo Candeias e o Rogério Sganzerla'', lembra.
Xavier não é apenas o criador do espaço que deu abertura a toda uma geração do cinema paranaense. É também um escritor de reconhecimento nacional, celebrado a partir de 98, quando sua obra passou a ser editada pela Companhia das Letras. ''O Mez da Grippe e Outros Livros'', escrito desta forma, com grafia de época, reúne uma série de trabalhos e foi listado entre os mais vendidos da Revista Veja.
''Ele já tinha sentido esse reconhecimento antes, quando foi para São Paulo, onde escreveu no Estado e na Folha. Foi aí que ele se deu conta do quanto era admirado'', explica a filha de Valêncio Xavier, a engenheira de alimentos Ana Pasinato Niculitcheff, 35. ''Meu pai sempre falou da dificuldade de ser reconhecido em Curitiba e entendia isso como uma característica do povo daqui.''
Há três meses nasceu Laila, filha de Ana e a primeira neta de Valêncio. ''É só uma pena que ele não esteja bem para curtir esse momento. O Alzheimer faz com que tenhamos de dividir as atenções entre ele e a pequena.'' Depois do diagnóstico, em 2002, Valêncio Xavier ainda escreveria um conto publicado no livro ''Remembranças de Menina de Rua Morta Nua e Outros Livros''.
Xavier veio para Curitiba em 68, para trabalhar no Canal 6, deixando para trás a São Paulo da infância, retratada no livro ''Minha Mãe Morrendo e o Menino Mentido'', e o emprego com Sílvio Santos. Na época, escrevia para os programas do apresentador que comprava horários nas TV Globo e Tupi. A função incluía roteirizar, ao lado de Tulio de Lemos, ''Namoro na TV''. ''Mas meu pai não se considerava paulistano. Ele dizia: 'Sou curitibano'. E por isso mesmo escreveu sobre a cidade'', lembra a filha Ana.
Em ''O Mez da Grippe e Outros Livros'', ele retrata o surto da gripe espanhola na Curitiba de 1918. Usa de imagens de arquivo, jornais da época e trechos que ele mesmo escreveu e que descrevem a trajetória de um estuprador. A estética não-usual em que combina imagem e texto é uma marca de sua obra. ''Ele foi dos escritores precursores da multimídia'', comenta Cristovão Tezza, escritor nascido em Lages (SC), mas que mora no Paraná desde os dez anos de idade.
A opinião de Tezza é compartilhada pelo professor de literatura brasileira da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Paulo Venturelli. ''O trabalho de Valêncio é extremamente de vanguarda. E quebra a estética realista, marca da literatura brasileira atual.''
Venturelli entende que Xavier é um autor também reconhecido no Paraná. ''Há muitos alunos de mestrado e doutorado escrevendo teses sobre a sua obra'', diz. ''Pela sua inquietude e preocupação metalinguística, se destaca dos demais. Valêncio Xavier é um autor de ponta.''