Edra Moraes:"Aprendi com um amigo que a poesia é o olhar. Então passei a exercitar o olhar poético na realidade crua que vivia"
Edra Moraes:"Aprendi com um amigo que a poesia é o olhar. Então passei a exercitar o olhar poético na realidade crua que vivia" | Foto: Anderson Coelho



A poeta e produtora cultural Edra Moraes lança na próxima terça-feira (27), em Londrina, "Para ler enquanto escolhe feijão", livro publicado pela Atrito Arte que evoca no título uma lembrança terna: a tarefa silenciosa das mulheres separando grãos para alimentar a casa. A metáfora também serve para quem escolhe poemas para alimentar a alma e assim, de grão em grão, a poeta trata a escrita como atividade íntima e concentrada. Tanto que para revisar o livro isolou-se no mosteiro Trapiche da Lapa, onde diz que encontrou tranquilidade para tarefa tão delicada.
Profissional de marketing e eventos há 20 anos, produtora e curadora cultural, seu livro de estreia foi "Da Divina, Da Humana e Da Profana
(Atrito Arte/2010); em 2014 e 2015 participou das antologias
poéticas "O fio de Ariadne" e "Um Dedo de Prosa" - também publicadas pela Atrito – e em 2015 foi uma das vencedoras da Bolsa Criação Literária do Ministério da Cultura, com o livro que chega agora ao público, com prefácio do jornalista Zeca Corrêa Leite e capa de Daniele Stegmann.
Autora de poemas também registrados em vídeo, Edra fala sobre literatura nesta entrevista à Folha 2, afirmando que "a poesia é a redenção da vida árida."

"Para ler enquanto escolhe feijão" é um título provocativo. Trata-se de uma recorrência à função doméstica das mulheres feita de forma crítica ou é uma lembrança terna mesmo?
Uma lembrança terna que recorre a uma condição milenar da mulher. Guardo cenas de duas mulheres inesquecíveis em seus papéis. Minha mãe, Nair Soares, que assim preparava o que perfumava a casa, alimentando corpo e alma. E Fernanda Montenegro na última cena do filme "Eles não usam Black-tie", para mim o mais perfeito retrato da nossa sociedade. Amo a atriz e a personagem. Acho isso tudo tão antigo. E acredito que a ilustradora Daniele Stegmann captou de maneira perfeita, reunindo na capa do livro todo simbolismo do universo da mulher, inspirada nas iluminuras irlandesas,país onde passei o tempo mais feliz da minha vida. O livro, objeto, ficou deslumbrante, é tão antigo e cheirando a novo como o assunto que discutimos. Poderia ser confundido com um diário.


Quando foram escritos os poemas selecionados para este livro?
Foram escritos nos últimos dois anos. Tenho uma produção lenta. Não sei fazer poesia pensada, tenho que viver. Não que todas as verdades ali escritas ou sentidas sejam minhas. Mas foram vividas. Aprendi com um amigo poeta que a poesia é o olhar. Então passei a exercitar o olhar poético na realidade crua que vivia. Gostei do resultado. Por vezes são paisagens interiores, meu olho de dentro me seca o tempo todo. Então diria que escrevi o que senti, até mesmo em momentos de profunda empatia, dores divididas pela compaixão de olhar o outro e desejar tirar-lhe a dor. Tenho como todas nós temos "um leito de mentiras" (verso seu que amo) e isso sempre dá bons poemas. Mas tenho outras dores, frustrações, decisões erradas, momentos de sabedoria e momentos de completa tempestade. A revisão do livro foi especial para mim, me isolei por quatro dias no mosteiro Trapiche da Lapa, e ganhei a paz e tranquilidade que eu precisava para finalizá-lo. Buscamos muitas coisas quando escrevemos, como experimentava esta linguagem crua, sem metáforas que aveludassem as coisas, temia que as dores perdessem a beleza e, ao mesmo tempo, precisava que fossem sentidas em sua face real. É complicado isto, sabemos que tentamos, nunca sei se conseguimos.

Seus poemas transformam as expectativas das mulheres numa antítese do que se consagrou como "feminino" pela cultura? Cito como exemplo o poema: "Não sou musa, sou poeta" que abre o livro. Diria que sua poesia é crítica sob este aspecto?
Esta frase nasceu de uma pesquisa que estava fazendo, mas é claro que perdi a frase e o autor. Ele dizia que "às mulheres era dado apenas o papel de musa e se uma se aventurava a seguir diferente era logo vista como vedete, se um amigo lhe elogiasse a produção seria imediatamente tomado como amante." Veja, estamos em pleno século XXI e ainda precisamos discutir os direitos da mulher
Minha luta não é contra o gênero, estudei o assunto, minha tese é em relação às "regras do gênero", para mim é isto que nos mata. Mulheres devem ser assim, homens devem ser assado. Assim uma mulher como eu que adora motos e sabe afinar um carburador é tachada como masculina. Há uma confusão muito grande nisso tudo. Com os garotos acontece a mesma coisa, se aos 15 gosta de poesia, não parte para a porrada e não cospe no chão, já definem a sexualidade dele. O mundo está muito chato, nivelamos por baixo e perdemos a capacidade de sentir sem rotular. Rotular ajuda as mentes medíocres a se decidirem. Mas não podemos viver uma vida tentando ser compreendidos por todos.

O seu poema "Do que cabe no CV" seria uma referência ao poema famoso de Wislawa Szymborska "Escrevendo o Currículo"?
Ah, poema lindíssimo e realmente li há uns cinco anos. Acredito sim que o tema me cativou, nos últimos anos estava passando por esta situação de recolocação no mercado. E são tantos os "crimes" listados pelos RHs que a gente termina por não saber o que cabe neste retrato chapado no papel do que seria a nossa vida. Acho que ela me deu o direito de fazer poesia disso, deste sentimento de construir algo que servirá para avaliarem você e se decidirem. Mas certamente o meu poema é o meu CV, o que vivi, tudo que eu queria dizer na entrevista de emprego, mas que não cabe no currículo.

Na sua opinião, qual o espaço que a poesia ocupa hoje na vida e na estante das pessoas?
Não saberia dizer qual, mas acredito que as pessoas deveriam entender que poesia não é um luxo, é preciso treinar este olhar para o mundo, é preciso acordar pela manhã e não esperar os grandes acontecimentos, que talvez nunca cheguem. É preciso escovar os dentes, sair para trabalhar, pegar os ônibus lotados, almoçar e fazer tudo isso com olhos de poeta. Minha família por parte de pai é nordestina e, de uma forma geral, o nordestino é um grande produtor de arte, mas ele não necessita consumir arte, ele não vê a arte como status, ele vê a arte como algo natural, uma redenção para a vida árida. Eu gostaria que todos se sentissem no direito de rabiscar versos e olhar a vida com este olhar que nos suaviza o viver.

Do que cabe no CV

Cabe o nome, a idade, o sexo
Não cabe o gênero, o desejo e o complexo

Cabem as datas que dão início e fim
Não cabe a jornada, o pão feito em casa
A tarde sem fazer nada

Cabem as referências, o cargo e o salário
Não cabe a honra, a fome, as trapaças

Cabem as fotos da cabeça,
Não cabe a mão, a perna, nem gozo e desespero

Cabem os diplomas, prêmios e as honrarias
Não cabe o tropeço, o fracasso, a desistência

Cabem as viagens e línguas estrangeiras
Não cabe o poema, a lua e o flatmate

Cabem penas de pavão recortadas no paint
Não cabe desilusão, solidão e o recomeço

(Poema do livro "Para ler enquanto escolhe feijão" de Edra Moraes)

Imagem ilustrativa da imagem A poesia em grãos
| Foto: Reprodução



Serviço:
Lançamento de "Para ler enquanto escolhe feijão" de Edra Moraes
Quando: dia 27 (terça-feira)
Horário: 20 horas
Local: Vila Cultural Cemitério de Automóveis (Rua João Pessoa, 103 A, Londrina)