"Este não é um livro. É uma difamação, uma calúnia, uma falta de caráter. Não é um livro no sentido comum da palavra. Não, este é um longo insulto, uma cusparada na cara da Arte, um chute na bunda de Deus, do Homem, do Destino, do Tempo, do Amor, da Beleza, do que você quiser. Vou cantar para você, meio desafinado talvez, mas vou. Cantarei enquanto você grasna. Dançarei em cima do seu cadáver sujo."
Essa é a maneira que o escritor norte-americano Henry Miller (1891 - 1980) avisa, logo na primeira página, o que o leitor pode encontrar em "Trópico de Câncer". Publicado originalmente em 1934, o romance foi censurado nos Estados Unidos até 1961. Acusado de obsceno, o livro ficou proibido juridicamente por 27 anos.
Em 1939, Henry Miller publicou "Trópico de Capricórnio", romance irmão de "Trópico de Câncer". Novamente o puritanismo entrou em ação e o livro foi censurado acusado de obscenidade até 1963. Toda essa história de censura e proibição é narrada em detalhes por Richard Seaver em "A Hora Terna do Crepúsculo: Paris nos Anos 1950, Nova York nos Anos 1960 – Memórias da Era de Ouro da Publicação de Livros" (Editora Globo, 2014).
No Brasil "Trópico de Câncer" e "Trópico de Capricórnio" chegaram em 1963, ambos lançados pela editora Ibasa. Curiosamente não sofreram perseguição, censura, proibição. Nenhum tipo de panaceia moral. Agora, numa época de ascensão do neo-conservadorismo, a editora José Olympio está colocando nas livrarias uma nova edição dos dois emblemáticos romances de Henry Miller.
Tanto em "Trópico de Câncer" como em "Trópico de Capricórnio", Henry Miller fala sobre a sexualidade sem nenhum tipo de filtro. Em sua ótica, o ato sexual deve ser encarado como realidade, não como elemento simbólico. Por narrar a sexualidade a partir dos prazeres do corpo, sua literatura chegou a ser considerada pornográfica.
Mas a nudez da sexualidade não é o tema central de nenhum dos dois livros, mas parte de um contexto muito maior. O grande foco é existencial. A proposta de Miller é liberar as comportas da vida e da escrita, sem repressão, sem amarras, sem limites. A principal característica de sua literatura está em se entregar ao fluxo da vida. Nesse processo, carregado de elementos confessionais, ocorre a fusão entre reflexão e descrição, entre mundo interno e mundo externo – e toda a confusão que essas fusões podem gerar.
Em "Trópico de Câncer", Henry Miller narra sua vivência em Paris, onde morou na década de 1930. Mas, diferentemente da vivência narrada por outros dois escritores americanos, Ernest Hemingway (1899 – 1961) e Scott Fitzgerald (1896 – 1940), onde a vida em Paris era uma rica festa repleta de luzes, a experiência de Miller é bem diferente: fome, frio, bares e restaurantes baratos, hotéis caindo aos pedaços, etc.
Em "Trópico de Capricórnio", narra sua vivência em Nova York durante a década de 1920, antes de partir para Paris. Vivendo de subemprego em subemprego, Miller decide entrar de cabeça na literatura. E para isso precisou mastigar o pão que o diabo assou. Precisou se reconstruir num mundo hostil. O sexo, em alguns momentos, chega a ser um elemento de fuga ou escapismo da realidade cruel e miserável.
Nos dois livros é possível encontrar um tipo de intensidade rara na literatura. Irado e indignado, o narrador se revolta contra o mundo para se reconstruir, quase misticamente, como homem. Elege a destruição como força primordial para a construção da essência do ser humano sem nenhum tipo de hipocrisia. Destruição e reconstrução fundamentadas na força da potência.
A partir do exercício do ato de expressão, Henry Miller chega a uma conclusão oculta pela luminosidade do espanto: "Confusão é uma palavra que inventamos para designar uma ordem que não é compreendida."

Serviço:
"Trópico de Câncer"
Autor – Henry Miller
Editora – José Olympio
Tradução – Beatriz Horta
Páginas – 292
Quanto – R$ 42,90

"Trópico de Capricórnio"
Autor – Henry Miller
Editora – José Olympio
Tradução – Marcos Santarrita e Angela Pessôa
Páginas – 322
Quanto – R$ 42,90

[left]Fragmentos:
Assim que a gente entrega a alma, tudo continua com mortal certeza, mesmo no meio do caos. Desde o princípio, jamais passou de outra coisa que não o caos: um fluido que me envolvia, que eu respirava pelas guelras. Nos substratos, onde a lua brilhava constante e opaca, era liso e fecundante; acima, confusa vozearia e discórdia. Em tudo eu via logo um oposto, uma contradição, e entre o real e irreal, a ironia, o paradoxo. Eu era o meu pior inimigo. Não desejava fazer nada que fosse melhor não fazer. Mesmo em criança, quando não me faltava nada, queria morrer: queria render-me porque não via sentido em lutar. Sentia que nada se provaria, consubstanciaria, somaria ou subtrairia pela continuação de uma existência que eu não pedira. Todos à minha volta eram um fracasso, ou, se não, ridículos. Sobretudo os bem-sucedidos. Estes me entediavam até as lágrimas. Eu era excessivamente compreensivo, mas não por simpatia. Era uma qualidade totalmente negativa, uma fraqueza que desabrochava à simples visão da infelicidade humana. Jamais ajudei a quem quer que fosse esperando que isso fizesse algum bem; ajudava porque não podia agir de outro modo.

(Fragmento de "Trópico de Capricórnio", de Henry Miller)

Imagem ilustrativa da imagem A luminosidade do espanto



Parece que para onde quer que eu vá tem drama. As pessoas são como os piolhos, entram na sua pele e grudam. A gente se coça até sangrar, mas nunca está totalmente despiolhado. Em todo canto aonde vou as pessoas estão criando uma confusão. Cada um tem sua tragédia pessoal. Está no sangue agora: a infelicidade, o tédio, a aflição, o suicídio. O ambiente está cheio de problemas, frustração, futilidade. Coce sem parar, até não sobrar mais pele. Mas o efeito em mim é hilariante. Em vez de desanimar ou ficar deprimido, eu gosto. Cada vez choro por mais problemas, por calamidades cada vez maiores, por fracassos maiores. Quero que o mundo inteiro se arrebente, quero que todos se cocem até morrer.

(Fragmento de "Trópico de Câncer", de Henry Miller)

Imagem ilustrativa da imagem A luminosidade do espanto

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