Na semana passada, durante uma caminhada matutina pelas ruas de Londrina, avistei um rapaz vindo em minha direção. Ao nos cruzarmos, senti um forte aperto no peito. O garoto, um adolescente imberbe, vestia uma camiseta preta, na qual se lia, em grandes letras brancas: “Ustra Vive”.

Entendi que se tratava de um sinal. Afinal, era 31 de março, aniversário de 59 anos do fatídico golpe civil-militar de 1964. Sabe-se que os “chefões” romperam a institucionalidade brasileira em 1.º de abril, dia da mentira. Para não entrarem para a história como peça de anedotário, recuaram o evento no calendário. De todo modo, é uma data triste, que devemos recordar para nunca mais permitir que se repita, sob nenhuma hipótese.

Voltando ao garoto. O senhor Ustra que ele estampava em sua veste foi um torturador execrável. Depoimentos emocionados de suas vítimas apontam uma criatura fria e sádica, que aterrorizava mulheres com sevícia e declarado prazer. Era visto com horror até mesmo entre alguns de seus pares do regime de exceção. Já idoso, tentou transmitir a imagem de um indivíduo frágil e idôneo, pai de família. Não colou. Sua maldade não estava na figura cultivada de “homem de bem”; estava naquilo que praticou, nas ideias que comungou, na ditadura que defendeu com muito sangue nas mãos.

À noite – era uma sexta-feira – fui para a UEL dar aula. Expus o episódio aos alunos e pedi que refletíssemos juntos sobre o papel da educação no combate a esse tipo de “esquecimento”. Eu falava das ideias de Octávio Ianni, que na década de 1980 organizou um conjunto de razões para que a Sociologia se tornasse uma disciplina enraizada nos currículos escolares. O foco do saudoso sociólogo era a formação de espíritos críticos, atentos, orientados pela nossa sofrida brasilidade. Dizia ele que à educação caberá sempre a tarefa de desnaturalizar os fatos, dando-lhes caráter humano, político, sempre provisório e passível de transformação.

Deixei o campus me sentindo mais leve e feliz. Percebi que há nos jovens – na maioria deles – uma clara disposição para fazer valer a verdade, a memória, o legado das lutas daqueles que nos antecederam. A questão do enfrentamento de um passado de censura, perseguição, tortura e morte diz muito pouco sobre ideologia. O fundamental é a preservação de uma forte vocação democrática entre as novas gerações. Isso é que deve pesar e importar.

Walter Benjamin ensina que nem os mortos estarão seguros se os inimigos vencerem. Nesse sentido, iluminar o passado corresponde a abraçar o presente como instante vivido, como marco das experiências responsáveis pela elaboração do futuro. Daí a urgência em defender a liberdade, em criticar os problemas da atualidade, em aspirar a um tempo novo, desbarbarizado.

Esse estranho caso de um jovem que ama a ditadura é evidente demonstração de que existe baixo e relativo apreço geral pelos valores mais caros ao longo e tenso processo civilizatório. “Há todo um velho mundo ainda por destruir e todo um novo mundo a construir. Mas nós conseguiremos.”, declamava Rosa Luxemburgo. Axé

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