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Michel Laub: "Todo linchador age em nome de princípios nobres"


Linchamento é sangue antigo na história da humanidade. O indivíduo, devidamente disfarçado no meio da multidão, encarna o papel de acusador, juiz e carrasco. Devidamente disfarçado pelo anonimato, o indivíduo bate, pisa, quebra, esfola e enforca.
Com o advento das novas tecnologias, o indivíduo encontrou um novo espaço para a necessidade de sangue: o linchamento virtual. Com um simples clic, é possível bater, pisar, quebrar, esfolar e enforcar sem sujar as mãos de sangue.
Em seu novo romance, "O Tribunal da Quinta-Feira", o escritor gaúcho Michel Laub aborda o discurso tolerante e atitude intolerante dos dias de hoje. E como as novas tecnologias estão determinando o próprio conceito de tolerância e intolerância num ambiente de hipocrisia social.
Em "O Tribunal da Quinta-Feira", o personagem-narrador (Victor) é um publicitário de quarenta e pouco anos vivendo uma complicada situação. Sua correspondência, via e-mail, que manteve com o melhor amigo (Walter) ao longo de anos é divulgada nas redes sociais por sua ex-esposa (Teca).
A motivação de Teca reside basicamente em vingança por ter sido trocada por outra mulher vinte anos mais nova. Ao encontrar a troca de mensagens no antigo computador do ex-marido, faz uma edição dos piores momentos e joga para circular na internet. O problema é Victor e Walter cultivavam, na relação de amizade, uma maneira particular de falar das coisas, sem nenhum tipo de filtro, com um total humor negro e mandando para ao espaço os princípios do politicamente correto.
Uma comunicação extremamente privada, uma espécie de lado B da expressão da intimidade, da amizade. Nas redes sociais, o conteúdo da correspondência rapidamente se espalha e culmina no linchamento e no julgamento virtual dos dois amigos. Quando o que era privado torna-se público, Victor e Walter perdem tudo: empregos, relações de amizade, namoradas, amantes, respeito, consideração e tudo mais.
O grande foco de Michel Laub não está em apenas evidenciar como acontece na multiplicação de um linchamento virtual, mas como as consequências são completamente desproporcionais em relação aos fatos reais. Os linchadores virtuais não estão interessados nas consequências dos próprios atos, apenas seguem o impulso de surfarem nas ondas do movimento coletivo do rebanho.
"Todo linchador age em nome de princípios nobres". Esta é uma das frases do personagem-narrador para situar sua leitura dos acontecimentos. E vai além, constata que existe algo que chama ironicamente de 'fascismo do bem". Em nome de uma moralidade do senso comum, o indivíduo no universo virtual é capaz de cometer as piores atrocidades defendendo uma suposta imagem de ética.
Em "O Tribunal da Quinta-Feira", Michel Laub também insere outro elemento na trama: a sexualidade após o aparecimento e a propagação do vírus HIV. O autor despende muito tempo tentando oferecer um panorama quase didático das transformações da AIDS ao longo das três últimas décadas. A responsabilidade pelo contágio, seja homossexual ou heterossexual, não assume o teor da discussão por reproduzir o mesmo princípio do "fascismo do bem".
A linguagem do romance traz alguma provocação. O discurso do narrador reproduz uma coleção de discursos típicos. Em alguns momentos há o discurso publicitário, em outro o discurso homofóbico, em seguia o discurso conservador, depois o discurso feminista, em seguida o discurso corporativo, em seguida o discurso homoafetivo, o discurso das liberdades individuais, o discurso machista, o discurso moralista, o discurso libertário e outros discursos mais. Todos eles faces de uma mesma moeda que ninguém sabe o valor.

Serviço:
"O Tribunal da Quinta-Feira"
Autor – Michel Laub
Editora – Companhia das Letras
Páginas – 184
Quanto – R$ 34,90

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Fragmento:

Todo fascista julga estar fazendo o bem. Todo linchador age em nome de princípios nobres. Toda vingança pessoal pode ser elevada a causa política, e quem está do outro lado deixa de ser um indivíduo que erra como qualquer indivíduo, em meia dúzia de atos entre os milhares praticados ao longo de quarenta e três anos, para se tornar o sintoma vivo de uma injustiça histórica e coletiva baseada em horrores permanentes e imperdoáveis. Nesse sentido, os quatro dias desde o último domingo têm sido gloriosos para Teca: aqui temos o homem com quem ela foi casada, exposto em público em sua indiscrição e covardia, e cada pedra jogada nele é uma declaração pública de que não praticamos nem toleramos nada parecido com o que ele fez. O que, evidentemente, não inclui a indiscrição de entrar numa conta de e-mail alheia. Nem a escolha de encaminhar as mensagens para outras pessoas. Nem a consciência de que essas outras pessoas acabarão vazando as mensagens. Nem que o vazamento mudará a vida de todos os envolvidos, e para sempre eles carregarão o peso da reação que você sabe que esse tipo de mensagem acarretará em 2016, e nem por um segundo você pensou que em alguns casos essa reação possa ser injusta, ou desproporcional, e que no instante seguinte a isso tudo não haverá mais chance de voltar atrás. Teca selecionou os trechos mais chocantes dos textos, na ordem 73 que mais fazia sentido e mais potencializava o escândalo, a tarde toda do domingo para montar esse dossiê com método, e depois me ligou para falar em maturidade, em respeito, em empatia, em boa vontade.

(Fragmento de "O Tribunal da Quinta-Feira", de Michel Laub)