O Tribunal de Contas da União (TCU) pediu acesso, em julho, ao resultado de centenas de fiscalizações realizadas pelos Conselhos Regionais de Medicina (CRMs) ao longo de 2015. Em meio ao calhamaço de informações para subsidiar os auditores um ponto se destaca: o descaso para com a infraestrutura da rede pública de atenção primária. É justamente nas 41 mil unidades básicas de saúde (UBS) espalhadas pelo País que os pacientes deveriam ter acesso às ações de promoção da saúde, de prevenção de doenças e de cuidados. Uma rede que, idealmente, deveria apresentar índice de mais de 80% de resolubilidade.
Plenamente eficientes, ajudariam a reduzir a incidência de doenças e a controlar os problemas crônicos, com menos sequelas e mortes, esvaziando hospitais e, o que mais gostam de ouvir os gestores, diminuindo custos. Contudo, os dados mostram uma rede à margem de suas possibilidades. A falta de instalações adequadas, de equipamentos e insumos não permite que as UBS cumpram suas missões. É o abandono pela população, justamente quando se encontra mais frágil.
Das 1.266 UBS vistoriadas pelos conselhos de medicina, em 2015, um total de 739 (58%) apresentavam mais de 30 itens em desconformidade com o estabelecido pelas normas legais em vigor. Sob a responsabilidade dos atuais gestores deixaram de cumprir exigências criadas pelo próprio Ministério da Saúde, entre outros órgãos, com o objetivo de proporcionar ao médico e ao paciente um ambiente adequado para o trabalho dos profissionais e o atendimento das comunidades.
O descaso transparece em contextos incompatíveis com a dignidade humana e a responsabilidade técnica. Em 41% das unidades não havia um negatoscópio (aparelho para avaliar uma radiografia). A falta de estetoscópio foi registrada em 23% das fiscalizações e a do esfignomanômetro (usado para medir a pressão arterial) em 20%.
A falta de instalações mínimas em locais onde a limpeza é fundamental também foi percebida. Em 3% das UBS visitadas não havia sanitários para os funcionários; em 8% faltavam pias ou lavados; a falta de sabonete líquido foi percebida em 16% e de papel toalha em 18%.
A pediatria é uma das especialidades que mais sofre com essa situação que beira o surreal. No Brasil, há 35 mil especialistas na área. Pouco mais de 70% deles atuam na rede pública, principalmente nessa rede que, como provam os conselhos de medicina, carece de quase tudo. Mesmo assim, num contexto completamente adverso, eles têm se desdobrado para oferecer às crianças e adolescentes o mínimo do que precisam.
Eles cuidam da saúde de 50 milhões de brasileiros, com idades de zero a 18 anos, que dependem exclusivamente do SUS para ter acesso a consultas médicas, exames, internações e cirurgias. No entanto, no cenário atual, profissionais e pacientes enfrentam situações-limite, que causam desespero nas famílias e impõem dilemas éticos aos médicos, cerceados por fatores que fogem ao seu controle.
Em nome da saúde e do bem-estar dos jovens brasileiros essa realidade deve ser transformada com urgência por meio de uma gestão competente. Nesse contexto, a assistência pediátrica de qualidade tem que ser vista como prioridade, pois se ocupa fundamentalmente daqueles que, mais que todos, precisam de um Governo que compreenda seu papel e entenda que o povo exige respeito à sua cidadania.

LUCIANA RODRIGUES SILVA é presidente da Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP)
e SIDNEI FERREIRA é diretor do Conselheiro Federal de Medicina (CFM)

■ Os ar­ti­gos de­vem con­ter da­dos do au­tor e ter no má­xi­mo 3.800 ca­rac­te­res e no mí­ni­mo 1.500 ca­rac­te­res. Os ar­ti­gos pu­bli­ca­dos não re­fle­tem ne­ces­sa­ria­men­te a opi­nião do jor­nal. E-­mail: opi­niao@fo­lha­de­lon­dri­na.com.br