O mito de Narciso deve ser um dos mais recontados da mitologia grega. A versão tomada por original fala de um jovem de beleza extasiante que, defrontando o próprio rosto refletido num espelho d’água, debruça-se a admirá-lo. Essa admiração é tamanha e cresce descontrolada a ponto de Narciso, na tentativa de alcançar a figura do belo inalcançável, cair no lago e morrer afogado.

Recorrer à mitologia e ao conceito de narcisismo – que simploriamente pode ser entendido como amor pela própria imagem – é uma saída quase obrigatória para considerar a época em que a representação visual parece valer, e vale, tanto: o hoje. As fotos do tipo selfie (autorretrato) talvez sejam símbolo da relação sacramentada do "eu" consigo mesmo.

Com o advento das redes sociais há um requinte: a presença do "outro". Não existe plateia consciente no mito de Narciso, mas existe agora. E a presença ativa desse segundo personagem parece interferir na maneira como os usuários se comportam nas redes, gerindo em simultâneo duas demandas: a admiração pela moldura de si e a admiração dos demais. Na internet, o "outro" é alguém que se conhece, ou não, a quem é dada uma importância tremenda a partir do momento em que há o desejo de obter alguma aprovação. Essa valorização é contabilizada em números de seguidores, curtidas, compartilhadas, comentários, likes, etc.

Há poucos dias vi na tevê uma reportagem sobre mídias sociais em que uma adolescente linda dizia ter apagado o autorretrato de um aplicativo qualquer porque a fotografia postada não obteve suficiente êxito – leia-se: não foi muito curtida. Para aquela garota, o reflexo solitário no espelho d’água, enfatizando sua beleza genuína, é pouco. Na contramão de Narciso, provavelmente, ela não se afogaria. Pelo menos não naquele lago.

A imagem aprovada com louvor quase sempre é aquela que extrapola os limites do belo e dita uma espécie de modelo a ser seguido: alguém que vista roupas e sapatos de marca conceituada, tenha dentes de um branco inacreditável, faça as melhores viagens, frequente shows badalados, beba vinhos caros, dirija supercarros, mostre a barriga "tanquinho", circule em belas companhias, forme uma família perfeita. Um padrão difícil de acompanhar e difícil de abandonar quando se quer tanto os tão desejados likes. E o que é o like? Like é apenas um símbolo de aprovação, é a figura de um polegar apontando para cima em sinal positivo, é alguém curtindo uma foto de corte de cabelo, de prato de comida, de estilo de vida. Porém, quando se lê nas entrelinhas, like é também o "outro" dizendo que só existe uma forma de autoadmiração: através da admiração alheia. Que o que vem de fora atinge, sim, e também modifica de maneira sutil o que se tem por dentro, como um ideal, por exemplo. Em um meio de constante distração, como a internet, não é simples alcançar essa percepção.

Muitos dos políticos, empresários, figurões de toda estirpe presos nas operações policiais em curso no Brasil tinham uma vida aparente admirada, curtida à exaustão nos próprios perfis ou nos perfis de suas esposas e filhos nas redes sociais. Esse tipo de comportamento sugere que eles já admiravam as conquistas de suas condutas fraudulentas, contudo, ainda necessitavam da admiração de terceiros para fechar um ciclo de afirmação, mesmo quando essa exposição significava risco. Diferente do mito de Narciso, o afogamento aqui é coletivo e em águas turvas.

ISOLDA HERCULANO é escritora e jornalista em Londrina

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